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Passados os primeiros annos da chegada á India começou a experimentar novos dissabores e revezes da fortuna. A D. Pedro de Mascarenhas succedera no governo d'aquelles estados Francisco Barreto, cujo caracter ha sido mui diversamente avaliado pelos biographos do poeta. Houve por occasião da sua investidura jogos, banquetes, è até (cousa não vulgar n'aquelles tempos!) representações theatraes. Para estas concorreu Luiz de Camões com o seu Auto de Filodemo. Mas por esse mesmo tempo escreveu os Disparates na India, e outras satyras pungentes, em que pintava com vivas cores a dissolução e os vicios que reinavam nos poderosos de Goa. Deram-se por aggravados os viciosos, e o imprudente censor teve de pagar cara a ousadia, recebendo ordem de partir para a China com o cargo de provedor dos defuntos e ausentes. Querem alguns ver na sua nomeação um despacho, por ser o emprego azado para lucros: outros porém sustentam que elle não fôra mais que um simulado degredo. Parece haver-se realisado esta partida em Março de 1556, anno em que tambem se conjectura haver falecido em Lisboa D. Catharina de Ataide.

Demorou-se o poeta em Macau cerca de dous annos, e n'esse intervallo é tradição constante que compuzera uma boa parte dos seus Lusiadas. Em 1558 o governador Francisco Barreto o mandou recolher a Gôa debaixo de prisão, diz-se que por intrigas ou mexericos de seus emulos, que o accusavam de malversações na gerencia do officio. A náo em que vinha naufragou na costa de Camboja, na Cochinchina. Ahi perdeu toda a fazenda que havia adquirido, conseguindo apenas salvar-se a nado, e levando em uma das mãos o manus

cripto do poema que devia perpetuar-lhe a fama. E' elle mesmo que nol-o attesta, quando ao falar do rio Mecon diz na estancia 128.a do canto x:

«Este receberá placido e brando

No seu regaço o canto, que molhado
Vem do naufragio triste e miserando
Dos procellosos baixos escapado;
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
N'aquelle, cuja lyra sonorosa
Será mais afamada que ditosa.»>

Regressando a Gôa, já pelos fins do governo de Francisco Barreto, foi mandado para a cadea publica, para se lhe instaurar ou continuar tal ou qual processo; e ahi mesmo, segundo a opinião do sr. Visconde de Juromenha (de quem tomamos a ordem chronologica d'estes successos) escreveu o bello e conceituoso soneto Alma minha gentil, que te partiste, etc., em que parece alludir á morte da sua querida Natercia.

Com a vinda de D. Constantino de Bragança, aportado a Goa em Setembro de 1558 para succeder no governo a Francisco Barreto, pôde Camões recobrar a liberdade. Solto e bemquisto do novo vice-rei, é de presumir que continuasse no serviço e expedições militares; pretende-se porém que ao terminar aquelle o triennio do seu governo, jazia outra vez em ferros o poeta; ou fosse por algumas travessuras recentemente praticadas, ou porque se levantassem contra elle novas recriminações com respeito ao logar que exercera em Macau.

N'estes trabalhos, e quando, diz-se, estava proximo a sahir da prisão, achou-se embargado a re

querimento de Miguel Rodrigues Coutinho, de alcunha o Fios-seccos (homein de coração pouco generoso, com quanto nobre por nascimento e esforçado nas pelejas) a quem o poeta devia certa porção de dinheiro, obtido por emprestimo em precisões urgentes. Foi n'esta conjunctura que, recorrendo ao patrocinio do novo vice-rei D. Francisco Coutinho, conde do Redondo, implorou a sua protecção no chistoso e epigrammatico memorial, que levará á mais remota posteridade o ignobil procedimento de quem assim o maltractara.

Restituido á liberdade, gosou sempre da estima dos novos governadores, que successivamente regeram aquelle estado. Em carta do conde do Redondo mandada para o reino (ainda que não dirigida a D. João III, como, com inconsiderada leveza, aventara ha pouco um biographo amigo de novidades, sendo aquelle monarcha falecido desde 11 de Julho de 1557, e a carta inquestionavelmente de data mui posterior, isto é, entre 1561-1564) lê-se que elle vice-rei, para occorrer ao despacho dos feitos se valia algum tanto do Provedor-mór dos defuntos. Mas que este innominado Provedor-mór em Goa fosse o proprio Luiz de Camões, que annos antes deixara de ser Provedor em Macau, fica ainda para nós, força é confessal-o, mais que muito duvidoso...

O seu cabimento com D. Francisco Coutinho, alias testimunhado até á evidencia por algumas de suas poeticas composições, nada perdeu com a morte d'este vice-rei em 1564 perante o successor D. Antão de Noronha, que, justo apreciador dos meritos do poeta, do tempo em que ambos haviam militado em Ceuta, continuara a dispensar-lhe egual benevolencia.

No intervallo que decorre de 1562 até 1567 empregou-se Camões por vezes no serviço das armadas. E' n'esta epocha que os biographos, supprindo a falta de documentos authenticos por inducções fundadas ou conjecturas verosimeis, collocam suas digressões militares a Malaca, e de lá ás ilhas Molucas, trazendo de volta para Gôa o fiel escravo jáo, que tão prestimoso tinha de ser-lhe no derradeiro periodo da vida.

Póde dar-se por facto averiguado, pois d'elle existe prova em documento escripto, que D. Antão de Noronha como devida remuneração de tantos e tão valiosos serviços, the conferira a supervivencia no logar de feitor em Chaul: cargo a que andavam annexos, afóra o vencimento fixo de 100 000 réis annuaes (hoje pelo augmento do numerario equivalente a bons 6003000 réis) outros logares de representação e proveito, quaes os de alcaide-mór, provedor dos defuntos e vedor das obras. Saudades da patria, ou talvez o destino providencial que a ella o chamava para immortalisar-lhe a gloria, não consentiram que aguardasse a eventualidade da vagatura, em que viria a realisar-se o provimento da mercê.

Determinado a passar ao reino, aproveitou o ensejo que para isso the proporcionava Pedro Barreto. Este se offerecia a leval-o comsigo até Moçambique, de cuja capitania ia tomar posse, e onde mais facil ficaria ao poeta esperar embarcação que o trouxesse a Lisboa. Mas a sorte apostada a perseguil-o, ahi lhe preparava novas amarguras. Desavindo-se com Pedro Barreto, por causa que se ignora, achou-se a braços com a miseria, e chegado ao extremo de comer de amigos, na phrase de Diogo do Couto, que n'esse lastimoso estado nos

conta o encontrara, ao arribar a Moçambique na náo, onde felizmente vinham outros aileiçoados do poeta. Fintaram-se estes entre si, não só para provel-o de todo o necessario, mas até, segundo se affirma, para embolçar Pedro Barreto de dozentos cruzados de que se dizia credor, por despezas que com elle fizera, e pelos quaes The embargava a saida. Por este vil preço foi pois resgatada a pessoa de Luiz de Camões, e vendida a honra de Pedro Barreto.

III

Em Novembro de 1569 largou de Moçambique para Portugal com as mais da armada a náo Santa Clara, a que outros deram o nome de Santa Fé. A seu bordo vinha Luiz de Camões, que regressando á patria depois de dezeseis annos passados entre o fragor das armas, com perigos e trabalhos de toda a especie, trazia por sua unica riqueza o já acabado poema, que ainda assim no curso da viagem se não descuidava de polir e aperfeiçoar. Novo infortunio lhe estava reservado antes de entrar no Tejo: a perda de um amigo intimo e companheiro na viagem, Heitor da Silveira, como elle poeta e egualmente desfavorecido da sorte. Em Abril de 1570 aportava em fim a Lisboa, n'esse tempo flagellada pelos horrores da peste, que nas historias ficou consignada com o epitheto de grande.

Os seus primeiros cuidados ao pousar na patria foram pelo que se vê dedicados à immediata publicação dos Lusiadas. Para ella obteve alvará de privilegio a 4 de Setembro do anno seguinte e logo nos principios de 1572 sahia dos prélos do impressor Antonio Gonçalves a primeira edição, e apoz

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