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so lançarem-se desde o principio no mar das conjecturas, soccorrendo-se de inducções mais ou menos fundamentadas, quer para determinar questões de logar e tempo, quer para dar luz a factos muitas vezes envoltos nas sombras do mysterio.

Cumpre porém confessar, que, apesar do muito que (mórmente em epochas modernas) a critica tem lidado para apurar a verdade, não são poucos nem de pequena monta os pontos sobre os quaes mal póde ainda assentar-se um juizo definitivo. Facil nos seria comprovar este asserto, mediante uma discussão em que não receiaramos entrar: veda-o porém a indole da tarefa que nos foi commettida, e ainda mais a exiguidade do espaço que para ella se nos faculta.

Assim limitar-nos-hemos á simples e succinta exposição chronologica da vida e acções do poeta, acostando-nos ás opiniões mais correntes, mas tomando principalmente por guia o sr. Visconde de Juromenha, nos pontos em que este erudito e perseverante investigador conseguiu rectificar alguns erros e inadvertencias de seus predecessores.

Descendente de familia nobre, oriunda de Galiza, e cujo tronco em Portugal começa em Vasco Pires de Camões, vindo para este reino no tempo de D. Fernando I, nasceu Luiz de Camões em Lisboa, ao que passa por mais certo: posto que antiga e modernamente Coimbra, Santarem e Alemquer pretendessem com argumentos especiosos disputar á capital a gloria, que em verdade lhe resulta, de ter sido o berço de tão esclarecido filho. Foram seus paes Simão Vaz de Camões, e Anna

de Sá, a quem alguns accrescentam o appellido de Macedo.

Se devemos inteira fé e credito a Manuel de Faria e Sousa, isto é, ao assento que elle affirma haver encontrado nos registros da Casa da India (sem que todavia saibamos como foram parar-lhe ás mãos, nem que descaminho ou extravio levaram depois) o poeta, contando de edade vinte e cinco annos no de 1550, deveria ser nascido por fins de 1524 ou principios de 1525: ao passo que os seus primeiros biographos lhe assignam a data do nascimento em 1517.

Não sendo para nós de peso algum o que ultimamente se escreveu em contrario, continuaremos a ter por mais provavel que em Lisboa começasse os seus primeiros estudos, indo depois continual-os em Coimbra, sob a direcção de seu tio D. Bento de Camões, que no anno de 1539 saira eleito geral da Congregação de Santa Cruz, e fôra pouco depois nomeado cancellario da Universidade. Da sua estada n'aquella cidade encontra-se mais de uma allusão nas suas poesias lyricas. Do seu aproveitamento litterario dão pleno e exuberante testimunho as suas obras. Não ha comtudo memoria ou vestigio de que chegasse a ser-lhe conferido algum dos graus, que, no concluir dos estudos, põem pelo dizer assim o sello aos trabalhos academicos.

Foi ainda nos ultimos tempos da sua permanencia em Coimbra (ao menos na opinião do sr. Visconde de Juromenha) que teve começo a paixão amorosa, que tão poderosamente devia influir em toda a sua vida. O objecto d'estes amores, que o poeta á sua volta para Lisboa pelos annos de 1542 a 1545 veiu encontrar na côrte, era D. Catharina d'Ataide, donzella da rainha D. Cathari

na, e filha de D. Antonio de Lima, então mordomo-mór do infante D. Duarte.

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Os primeiros annos da sua residencia na côrte parece haverem sido para Luiz de Camões a epocha de felicidade, em que elle diz de si: «que andava farto, querido e cheio de favores e mercês de amigos e damas. Seu talento e dotes naturaes não só lhe conciliaram a estima e convivencia das pessoas mais qualificadas, mas até lhe facilitaram a entrada no paço. Ahi com a frequencia e tracto da dama, sem respeito ao local privilegiado, tomaram incremento os amores, que divulgados por inveja ou ciume, provocando talvez as iras de parentes poderosos, fizeram que sobre o poeta recahisse a severidade da lei. E a essa causal attribue uma tradição com visos de bem fundada o desterro, que primeiro soffreu em logar situado nas margens do Tejo, que o sr. Visconde conjeclura ser Punhete (hoje villa de Constancia), e mais tarde, ao que se presume, por effeito de nova reincidencia, nas possessões de Africa.

Na praça de Ceuta assistiu e militou por algum tempo, tomando parte nas refregas contra os mouros; e perdendo em um d'esses recontros o olho direito: se não é que, como alguns pretendem, tal desastre lhe sobreveiu á ida em combate naval, travado no estreito de Gibraltar com a propria embarcação que o transportava.

Parece que no anno de 1549, sendo chamado á côrte D. Affonso de Noronha, que estava de capitão em Ceuta, para ir succeder no governo da India a D. João de Castro, com elle viera o poeta no intuito de acompanhal-o áquellas paragens; para o que effectivamente se alistara em 1550, segundo consta do assento citado por Faria e Sousa.

Mas é facto não haver partido n'esse anno, e somente seguiu viagem no de 1553, embarcando-se na armada de que ia por capitão-mór Fernão Alvares Cabral, que largou d'este porto a 24 de Março.

No intervallo d'esta sua demora em Lisboa foi que, por um caso fortuito, houve de jazer durante alguns mezes na cadêa publica.

Era Luiz de Camões de indole buliçosa, e naturalmente ousado. Elle mesmo diz algures, que seus adversarios nunca lhe viram as solas dos pés. Quiz a sorte que nas festas e folgares, que por aquelles tempos eram de costume em Lisboa para solemnisar o dia de Corpus Christi, se armasse desordem entre dous mascarados e um Gonçalo Borges, criado d'el-rei. O poeta, que presenciou este conflicto, acudiu para logo em defeza dos mascarados, que reconheceu por amigos, e com a espada deu a Gonçalo Borges um golpe no pescoço. Capturado em flagrante pela justiça, houve de expiar o crime na prisão do Tronco, d'onde só logrou vêrse livre pela carta de perdão, que El-Rei lhe mandou passar, attendendo a ter elle sido já perdoado pelo offendido, e por ser homem mancebo e pobre, que se propunha ir servir na India. Tem esta carta data de 13 de Março de 1553.

Partiu pois, e em tão má hora se despedia de Lisboa, que tornava suas aquellas memoráveis palavras attribuidas a Scipião Africano: Ingrata patria non possidebis ossa mea.

II

Decorridos seis mezes de arriscada e trabalhosa viagem, desembarcou em Goa da náo S. Bento, unica entre as quatro da armada que conseguiu chegar ao seu destino n'aquelle anno. Achou o vice-rei D. Affonso de Noronha, com quem servira em Ceuta, occupado nos preparativos de uma forte expedição, com que determinara sahir em soccorro dos reis de Cochim e Poreá, nossos amigos, aos quaes movia guerra o da Pimenta, denominado por outros de Chambé. Não despresou Camões para a sua estreia tão opportuno ensejo, e tomou parte n'essa expedição, de cujo successo dá conta na elegia que começa: O poeta Simonides falando etc., na qual tambem relata o que lhe aconteceu durante a navegação de Lisboa para a India, e a furiosa tormenta que o assaltara ao passar o cabo de Boa-Esperança.

Apoz esta entrou em outras emprezas militares, sem que todavia essas occupações, e os trabalhos padecidos nos intervallos, podessem desvial-o do cultivo das musas; tendo, como elle diz, nos dezeseis annos vividos na Asia: N'hua mão sempre a espada e n'outra a penna. Foi assim que discorreu a India por todas as partes; penetrou no mar Roxo e no golfo Persico; residiu em Malaca, nas Malucas e em Macau; visitou Sumatra, Ceilão e as Maldivas. E como esmerado e curioso observador, soube debuxar fielmente o quadro d'estas paragens, tanto no seu immortal poema, como em varias composições avulsas, que lemos nas suas Rythmas.

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