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C

CAMÕES

I

A BIOGRAPHIA DO POETA

§ 1. — NASCIMENTO E EDUCAÇÃO LITTERARIA

(1524 a 1542)

NOME de Camões pertence a uma familia nobre da Galliza, como o dos Mirandas, Caminhas e outros da aristocracia portugueza, que no seculo XIV tanto desenvolveram a poesia provençalesca da côrte de D. Diniz, conservada nos admiraveis Cancioneiros palacianos do fim da época trovadoresca, e que no seculo xvi, reapparece pelo impulso de Sá de Miranda e de Luiz de Camões, que comprehenderam o humanismo da Renascença e fecundaram esse periodo, a que na litteratura portugueza se chamados Quinhentistas. Não é sem importancia esta correlação das duas epocas; nos versos de Sá de Miranda abundam as fórmas gallegas conservadas inconscientemente pelo povo na linguagem oral; em Camões, em Jorge Ferreira, em Gil Vicente essas fórmas são tambem frequentes (1), porém acima da persistencia dos galle

(1) Parnaso portuguez moderno», p. xxxvII.

A

guismos, descobrimos a persistencia de certas fórmas poeticas conservadas na litteratura portugueza, como os cantares de serranilha, de ledino e guaiados, alguns dos quaes se acham no proprio Camões. Em uma canção de João de Gaya, do tempo de Affonso iv, achamos este estribilho de uma bailata popular:

Vos avedel-os olhos verdes (1)

cuja persistencia se observa nas redondilhas de Camões, nas coplas Menina dos olhos verdes, e Senão que tendes os olhos verdes. Algumas d'essas serranilhas introduzidas por Gil Vicente nos seus Autos, em que procurava pintar a vida do povo, acham-se tambem glosadas por Camões, dando fórma litteraria a esses fragmentos da tradição galleziana: é commum a Camões e a Gil Vicente esse estribilho galleziano:

Quem ora soubesse
Onde o amor nacesse
Que o semeasse. (2)

Comprehende-se o valor historico, que tem para a biographia de Camões, o ser oriundo de uma familia fidalga da Galliza, sobretudo na orientação do seu genio lyrico. Vasco Pires de Camões, celebrado no Cancioneiro de Baena, e na celebre Carta do Marquez de Santillana, foi o seu terceiro avô; do seu filho segundo, João de Ca. mões, cujo solar era em Coimbra, nasceu por casamento com Inez Gomes da Silva, Antão Vaz de Camões. Não să isto factos de esteril erudição; por elles se explicam as relações de intimidade do poeta com a familia do Re

(1) Canc. da Vat., n.o 1061.

(2) Obras de Gil Vicente, II, p. 323.

gedor, a quem dedicou alguns versos, e particularmente a amisade e confidencias dos amores do paço com o poeta Jorge da Silva, apaixonado pela Infanta D. Maria. Antão Vaz de Camões, avô do poeta, casou com D. Guiomar Vaz da Gama, da familia dos Gamas do Algarve, nobilitada pela arrojada empreza maritima de Vasco da Gama; esta circumstancia não é indifferente para a determinação do poeta tomar como thema dos seus cantos a descoberta do Oriente, circumstancia que se lhe faria notar pela coincidencia de ter nascido no mesmo anno em que fallecera o destemido navegador. Pelos Lusiadas e por tradições conservadas na vida do poeta se conhece que Luiz de Camões possuia um sentimento de despeito contra a familia dos Gamas, despeito abafado pelo sentimento profundo da patria (Lus., cant. v, est. 99 e 100); este facto hade lançar uma nova luz sobre a epoca da sua vida na côrte de Lisboa. Do casamento de Antão Vaz de Camões provieram dois filhos, Simão Vaz, pae do grande epico, e Bento de Camões, conego regrante de Santa Cruz de Coimbra, Cancellario da Universidade no tempo da reforma dos estudos em 1539, e Geral da ordem. Este tio do poeta exerceu uma influencia decidida na sua educação nos annos dos estudos menores em Santa Cruz de Coimbra, e dos dados historicos da sua vida, se determinam factos preciosos da biographia de Camões, como os seus primeiros ensaios litterarios, epoca da frequencia da Universidade, saída da côrte e partida para a Africa. Simão Vaz de Camões, casou em Santarem, com Anna de Sa e Macedo, filha de Jorge de Macedo; este facto está ligado a outros accidentaes, mas não indifferentes, como a posse da Quinta do Judeu em Santarem, que andava em sua familia desde as doações regias a Vasco Pires de Camões, e o acompanhar Simão Vaz a còrte portugueza nas suas frequentes ferias do palacio de Almeirim, defronte de Santarem. D'este casamento nasceu o poeta

Luiz de Camões, em Lisboa, em 1524. Fixa-se esta data importante por um modo indirecto, pelo Registo das pessoas que passaram a servir na India desde 1550, visto por Faria e Sousa, e no qual se dava ao poeta a edade de vinte cinco annos; na Canção x1, Camões descreve o horoscopo desastroso do seu nascimento, porque no anno de 1524 correu esse extraordinario prognostico astrologico de um diluvio universal, produzido pela conjuncção de todos os planetas em Piscis, prognostico que chegou a ser tão atterrador que Cristobal de Arcos fez um opusculo combatendo essa infundada apprehensão vulgar, resto dos antigos terrores do millenio. Está portanto authenticada a data do nascimento de Camões; a sua patria, disputada por Lisboa, Coimbra, Santarem e Alemquer, está tambem definida pelo poeta na Ecloga 111, onde se pinta como Ovidio, desterrado da patria, Lisboa, de que tanto se lembra no Oriente, como a Sião dos cativos israelitas, e cujos solecismos conserva na sua linguagem ; a tradição tem sempre um fundo de verdade, e Coimbra, Santarem e Alemquer estão ligadas á memoria do poeta, como vimos já pelos factos particulares da sua genealogia.

Luiz de Camões foi levado muito cedo para Coimbra, onde seu pae fixou por algum tempo a residencia.

Em 1527 espalhou-se a terrivel peste que devastou a Estremadura e o Alemtejo, e D. João 1 fugiu com a côrte para Coimbra; foi tambem pouco antes de 1527 que D. Bento de Camões tomou o habito em Santa Cruz de Coimbra, e ambos estes factos nos explicam os motivos e occasião da saida de Simão Vaz de Lisboa. A côrte vivia em Coimbra na dissipação opulenta á custa dos fidalgos da terra, a que Sá de Miranda chamava nas suas quintilhas parvos honrados, por se deixarem explorar por esse parasitismo palaciano; a pobreza quasi repentina da familia de Simão Vaz de Camões não é sem relação com este viver de Coimbra. A côrte divertia-se

para distrahir-se da péste, e Gil Vicente vinha de Santarem a Coimbra representar os seus Autos, como a farça dos Almocreves e a Divisa da Cidade de Coimbra, alludindo no primeiro a um fidalgo pobre, Simão Vaz, por ventura o pae do poeta, que elle conhecia de Santarem. Camões conheceu os escriptos de Gil Vicente, imitando os seus Autos, como uma impressão indelevel dos seus primeiros annos, e tambem o então bastante popular romance de Dom Duardos. Na Canção Iv descreve o poeta a sua vida infantil de Coimbra, pelas margens do Mondego, e a este periodo da sua vida pertencem as primeiras relações de amisade com Jorge de Monte-Mór, reatadas em 1552. Jorge de Monte-Mór alude nos seus versos a esse periodo em que se exercitava com outros seus eguaes em cantar de amor, o que Camões repete com grandes analogias na canção referida.

A epoca em que entrou Camões nos estudos póde fixar-se em 1537, porque era aos doze annos que se entrava para as escholas de Santa Cruz de Coimbra, como o afirma D. Nicoláo de Santa Maria. Os estudos menores de Santa Cruz de Coimbra haviam sido reorganisados pelo padre reformador Frei Braz de Barros, que mandara vir differentes professores da Universidade de Paris; depois de 1528 eram estas escholas frequentadas por toda a aristocracia portugueza, e ali teve Camões o germen das valiosas amisades que o acompanharam toda a vida, taes como a dos filhos do Duque de Bragança, a dos filhos do Conde de Sortelha, D. Gonçalo da Silveira memorado nos Lusiadas (x, 93), e D. Alvaro da Silveira celebrado como um bravo nas Elegias. O professor de Grammatica latina das escholas de Santa Cruz, era D. Maximo de Sousa, filho de um fidalgo de Soure, casado com D. Anna de Macedo, natural de Santarem, e por isso inferimos que este mestre de Camões fôra por certo seu parente.

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