Imagens das páginas
PDF
ePub

105 Tu só, de todos quantos queima Apollo,
Nos recebes em paz, do mar profundo;
Em ti, dos ventos horridos de Eolo,
Refugio achamos bom, fido e jucundo.
Em quanto apascentar o largo polo

As estrellas, e o Sol der lume ao mundo,
Onde quer que eu viver, com fama e gloria
Viverão teus louvores em memoria.

106 Isto dizendo, os barcos vão remando
Para a frota, que o Mouro ver deseja;
Vão as naos huma e huma rodeando,
Porque de todas tudo note e veja:
Mas para o ceo Vulcano fuzilando,
A frota co'as bombardas o festeja,
E as trombetas canoras lhe tangiam;
Co'os anafis os Mouros respondiam.
107 Mas despois de ser tudo já notado
Do generoso Mouro, que pasmava,
Ouvindo o instrumento inusitado,
Que tamanho terror em si mostrava;
Mandava estar quieto e ancorado
N'agua o batel ligeiro, que os levava,
Por fallar de vagar co'o forte Gama
Nas cousas de que tem noticia e fama.

108

Em praticas o Mouro differentes
Se deleitava, perguntando agora
Pelas guerras famosas e excellentes
Co'o povo havidas, que a Mafoma adora:
Agora lhe pergunta pelas gentes

De toda a Hesperia ultima, onde mora:
Agora pelos povos seus vizinhos;
Agora pelos humidos caminhos.

109 Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta, lhe dizia, diligente
Da terra tua o clima, e região
Do mundo onde morais, distinctamente;
E assi de vossa antigua geração,
E o principio do reino tão potente,
Co'os successos das guerras do começo,
Que, sem sabe-las, sei que são de preço:
110 E assi tambem nos conta dos rodeios
Longos, em que te traz o mar irado,
Vendo os costumes barbaros, alheios,
Que a nossa Africa ruda tem criado.

111

Conta; que agora vem co'os aureos freios
Os cavallos, que o carro marchetado
Do novo sol, da fria Aurora trazem:

O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

E não menos co'o tempo se parece O desejo de ouvir-te o que contares; Que quem ha, que por fama não conhece As obras portuguezas singulares? Não tanto desviado resplandece De nós o claro Sol, para julgares Que os Melindanos tem tão rudo peito, Que não estimem muito hum grande feito. 112 Commetteram soberbos os Gigantes

Com guerra vă o Olympo claro e puro
Tentou Pirithoo e Théseo, de ignorantes,
O reino de Plutão horrendo e escuro:
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos he trabalho illustre e duro,
Quanto foi commetter inferno, e ceo,
Que outrem commetta a furia de Nereo.
113 Queimou o sagrado templo de Diana,
Do subtil Ctesiphonio fabricado,

Herostrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo e nomeado:
Se tambem com taes obras nos engana
O desejo de hum nome avantajado,
Mais razão ha, que queira eterna gloria,
Quem faz obras tão dignas de memoria.

CANTO TERCEIRO.

1 Agora tu, Calliope, me ensina
O que contou ao Rei o illustre Gama:
Inspira immortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da medicina,
De quem Orpheo pariste, ó linda dama,
Nunca por Daphne, Clycie, ou Leucothoe,
Te negue o amor devido, como soe.

2 Põe tu, Nympha, em effeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;

Que veja e saiba o mundo, que do Tejo
O licor de Aganippe corre e mana.
Deixa as flores do Pindo, que já vejo
Banhar-me Apollo na agua soberana;
Senão direi, que tens algum receio,
Que se escureça o teu querido Orpheio.
3 Promptos estavam todos escuitando
O que o sublime Gama contaria;

Quando, despois de hum pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assi dizia:

Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia:

Não me mandas contar estranha historia,
Mas mandas-me louvar dos meus a gloria.

4 Que outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa he que se costuma e se deseja;
Mas louvar os meus proprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E para dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja:
Mas pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.

5 Alem disso, o que a tudo em fim me obriga,
He não poder mentir no que disser,
Porque de feitos taes, por mais que diga,
Mais me ha de ficar inda por dizer:

Mas, porque nisto a ordem leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro tratarei da larga terra,
Despois direi da sanguinosa guerra.

6 Entre a zona, que o Cancro senhorea,
Meta septentrional do Sol luzente,
E aquella, que por fria se arrecea
Tanto, como a do meio por ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodea,
Pela parte do Arcturo e do Occidente,
Com suas salsas ondas o Oceano,
E pela Austral, o mar Mediterrano.

7

Da parte donde o dia vem nascendo,
Com Asia se avizinha: mas o rio,
Que dos montes Rhipheios vai correndo
Na alagoa Meotis, curvo e frio,

As divide, e o mar, que fero e horrendo
Vio dos Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Troia triumphante

Não vê mais que a memoria o navegante.

8 Lá onde mais debaixo está do polo,
Os montes Hyperboreos apparecem,
E aquelles onde sempre sopra Eolo,
E co'o nome dos sopros se ennobrecem:
Aqui tão pouca força tem de Apollo
Os raios, que no mundo resplandecem,
Que a neve está contino pelos montes,
Gelado o mar, geladas sempre as fontes.
9 Aqui dos Scythas grande quantidade

Vivem, que antiguamente grande guerra
Tiveram sobre a humana antiguidade
Co'os que tinham então a Egypcia terra:
Mas quem tão fóra estava da verdade,
(Já que o juizo humano tanto erra),
Para que do mais certo se informara,
Ao campo Damasceno o perguntara.

10 Agora nestas partes se nomea

A Lappia fria, a inculta Noruega ;
Escandinavia ilha, que se arrea
Das victorias, que Italia não lhe nega.
Aqui, em quanto as aguas não refrea
O congelado inverno, se navega
Hum braço do Sarmatico Oceano,
Pelo Brusio, Suecio e frio Dano.

11 Entre este mar e o Tanais vive estranha
Gente, Ruthenos, Moscos e Livonios,
Sarmatas outro tempo; e na montanha
Hercyna, os Marcomanos são Polonios.

Sujeitos ao imperio de Allemanha
São Saxones, Bohemios e Pannonios,
E outras varias nações, que o Rheno frio
Lava, e o Danubio, Amasis e Albis rio.
12 Entre o remoto Istro e o claro estreito,
Aonde Helle deixou co'o nome a vida,
Estão os Thraces de robusto peito,
Do fero Marte patria tão querida,
Onde co'o Hemo, o Rhodope sujeito
Ao Othomano está, que submettida
Byzancio tem a seu serviço indino;
Boa injuria do grande Constantino!
13 Logo de Macedonia estão as gentes,
A quem lava do Axio a agua fria:
E vós tambem, ó terras excellentes
Nos costumes, engenhos e ousadia,
Que creastes os peitos eloquentes,
E os juizos de alta phantasia,

Com quem tu, clara Grecia, o ceo penetras,
E não menos por armas, que por letras.
14 Logo os Dalmatas vivem; e no seio,
Onde Antenor já muros levantou,

A soberba Veneza está no meio
Das aguas, que tão baixa começou.

Da terra hum braço vem ao mar, que, cheio
De esforço, nações varias sujeitou;
Braço forte de gente sublimada,

Não menos nos engenhos, que na espada.

15 Em torno o cerca o Reino Neptunino,
Co'os muros naturaes por outra parte:
Pelo meio o divide o Apennino,
Que tão illustre fez o patrio Marte:
Mas despois que o porteiro tem divino,
Perdendo o esforço veio e bellica arte:
Pobre está já da antigua potestade:
Tanto Deos se contenta da humildade!

16 Gallia ali se verá, que nomeada

Co'os cesáreos triumphos foi no mundo,
Que do Séquana e Rhodano he regada,
E do Garumna frio e Rheno fundo:
Logo os montes da Nympha sepultada,
Pyrene, se alevantam, que, segundo
Antiguidades contam, quando arderam,
Rios de ouro e de prata então correram.

« AnteriorContinuar »