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XVIII.

Vi claramente visto o lume vivo
Que a maritima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta, e vento esquivo,
De tempestade escura, e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo

Milagre, e cousa certo de alto espanto,
Ver as nuvens do mar, com largo cano,
Sorver as altas aguas do Oceano.

ΧΙΧ.

Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava) levantar-se
No ar hum vaporzinho, e subtil fumo,
E do vento trazido, rodear-se:

De aqui levado hum cano ao polo summo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da materia das nuvens parecia.

xx.

Hia-se pouco e pouco accrescentando,

E mais que hum largo mastro se engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de agua em si chupava :
Estava-se co' as ondas ondeando;
Em cima delle hu' a nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada
Co'o cargo grande d' agua em si tomada.

XXI.

Qual roxa sanguesuga se veria
Nos beiços da alimaria (que imprudente
Bebendo a recolheo na fonte fria)
Fartar co'o sangue alheio a sede ardente:
Chupando mais e mais se engrossa, e cria;
Alli se enche, e se alarga grandemente;
Tal a grande columna, enchendo augmenta
A si, e a nuvem negra que sustenta.

XXII.

Mas despois que de todo se fartou,
O pé que tem no mar a si recolhe,
E pelo ceo chovendo em fim voou,
Porque co' a agua a jacente agua molhe :
Ás ondas torna as ondas que tomnou;
Mas o sabor do sal lhe tira, e tolhe.
Vejam agora os sabios na escriptura,
Que segredos são estes de natura.

XXIII.

Se os antiguos philosophos, que andaram
Tantas terras por ver segredos dellas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas;
Que grandes escripturas que deixaram!
Que influição de signos, e de estrellas!
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo sem mentir, puras verdades.

XXIV.

Mas já o planeta, que no ceo primeiro
Habita, cinco vezes apressada,
Agora meio rosto, agora inteiro

Mostrara, em quanto o inar cortava a armada;
Quando da etherea gavea hum marinheiro,
Prompto co' a vista, Terra, Terra, brada :
Salta no bordo alvoroçada a gente,
Co' os olhos no horizonte do Oriente.

xxv.

Á maneira de nuvens se começam

A descobrir os montes que enxergamos;

As ancoras pesadas se adereçam,
As velas já chegados amainamos:
E para que mais certas se conheçam
As partes tão remotas onde estamos,
Pelo novo instrumento do Astrolabio,
Invençao de subtil juizo, e sabio;

XXVI.

Desembarcamos logo na espaçosa
Parte, por onde a gente se espalhou,
De ver cousas estranhas desejosa,
Da terra que outro povo não pizou :
Porem eu co' os pilotos, na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do sol a altura,
E compassar a universal pintura.

XXVII.

Achamos ter de todo jă passado
Do Semicapro peixe a grande meta,
Estando entre elle, e o circulo gelado
Austral, parte do mundo nais secreta.
Eis de meus companheiros rodeado,
Vejo hum estranho vir de pelle preta,
Que tomaram por força, em quanto apanha
De mel os doces favos na montanha.

XXVIII.

Torvado vem na vista, como aquelle
Que não se vira nunca em tal extremo;
Nem elle entende a nós, nem nós a elle,
Selvagem mais que o bruto Polyphemo:
Começo-lhe a mostrar da rica pelle
De Colchos o gentil metal supremo,
A prata fina, a quente especiaria;
A nada disto o bruto se movia.

ΧΧΙΧ.

Mando mostrar-lhe peças mais somenos,
Contas de crystallino transparente,
Alguns soantes cascaveis pequenos,
Hum barrete vermelho, cor contente.
Vi logo por signaes e por acenos,
Que com isto se alegra grandemente:
Mando-o soltar com tudo; e assi caminha
Para a povoação, que perto tinha.

xxx.

Mas logo ao outro dia seus parceiros,
Todos nus, e da cor da escura treva,
Descendo pelos asperos outeiros,

As peças vem buscar que est' outro leva :
Domesticos já tanto, e companheiros

Se nos mostram, que fazem que se atreva
Fernão Velloso a ir ver da terra o trato,
E partir-se com elles pelo mato.

XXXI.

He Velloso no braço confiado,

E de arrogante crè que vai seguro;

Mas, sendo hum grande espaço já passado,
Em que algum bom signal saber procuro,
Estando, a vista alçada, "co' o cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Apparece, e segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.

XXXII.

O batel de Coelho foi depressa
Polo tomar, mas antes que chegasse,
Hum Ethiope ousado se arremessa
A elle, porque não se lhe escapasse:
Outro e outro lhe sahem; ve-se em pressa
Velloso, sem que alguem lhe alli ajudasse;
Acudo eu logo, e em quanto o remo aperto,
Se mostra hum bando negro descoberto.

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