cordata pôde mais do que muitos exercitos de Napoleão, porque as resistencias nacionaes algumas vezes se quebraram diante da connivencia do clero catholico, que via em Napoleão o enviado de Deus para restabelecer a sua Egreja, como o proclamara o abbade Fournier do pulpito de Saint-Roch por occasião da victoria de Marengo. Quando os exercitos napoleonicos invadiram Portugal achámos o triste espectaculo de vêr o clero superior recommendar obediencia e acatamento a Napoleão. A solidariedade da corporação estava acima do sentimento de patria; viu-se isso no fim do seculo xvi, quando a Hespanha concentrava em si a resistencia da unidade catholica, e por isso a aristocracia e o povo portuguez, para não enfraquecerem essa resistencia, abdicaram da nacionalidade, submettendo-se ao jugo de Filippe 11. Napoleão estava agora no mesmo caso; era pois logica a recommendação dos governadores do Patriarchado de Lisboa, e essa vergonhosa pastoral de 20 de maio de 1808, em que o venerando Cenaculo renova o deploravel papel que no seculo xvi fizera D. João de Mascarenhas. Importa determinar bem estės factos. O Principal Mendonça, depois da sua exoneração de reformadorreitor da Universidade, foi nomeado patriarcha de Lisboa; faleceu em 11 de fevereiro de 1808, ficando a governar o Patriarchado os tres Principaes D. Francisco Raphael de Castro, Estevão Telles da Silva e Antonio Xavier de Miranda, que se celebrisaram pela pastoral de 2 de julho do mesmo anno, em que se censurava o povo por ser hostil aos invasores francezes. N'esse documento se lê: «... nas provincias se praticaram inauditos exemplos de crueza contra os Francezes, que professavam como nós a Santa Religião de Jesus Christo.... E em seguida ameaçavam o povo: «... contae de certo com os promptos e temerosos castigos que vos esperam... Desembainharemos contra vós a Espada espiritual da Igreja e descarregaremos sobre vossas desatinadas cabeças os terriveis golpes das Excommunhões e dos Anathe mas.) Pela sua parte o venerando Cenaculo, arcebispo de Evora, quando o general Loison assolava o Alemtejo, publicava uma pastoral, com data de 20 de maio do mencionado anno, em que prégava a obediencia a Bonaparte: «O motivo de acautellar enganos e dissabores, e sobretudo a lei nobre da virtude, que deve prevalecer em nossas generosas acções, me inspiram a dizer-vos, senhores, dictames sensatos e collocarem em vo8808 corações a indole do sabio Imperador que nos prende e governa... Devemos ajustar-nos á observancia que os mesmos superiores de nós pedem, e eu devo abrir o Evangelho aos meus Fieis e dizer-lhes que nos he necessario servil-os e obedecer cordealmente, não só por temor, pois que o Poder ao qual obedecemos e servimos todo he de Deus... Temos hum Soberano acredor de nossos continuos, ferventes e humildes obsequios, mui respeitado por solemnissimas victorias, adornado por dotes e acções extraordinarias, animado por virtudes transcendentes, e prendas d'aquellas que constituem os Heroes, e ás quaes devemos tanta felicidade como respeito... Os singulares exemplos de suas virtudes marciaes, e da melhor Filosofia em beneficio de seus dependentes, em que se ha esmerado o Gloriosissimo Imperador e Rei Napoleão nosso Soberano, então o revestia de formosura sublime quando o sujeitou á Religião... De seu adoravel e zeloso arbitrio he tambem a Lei sobre a Doutrina do Catechismo e suas dependencias, ao que tudo tem ultimamente dado efficaz energia, pela instituição das Cadeiras Theologicas e das que lhe fazem a côrte...) Eram os effeitos da Concordata de 15 de julho de 1801, que n'este momento valia por duzentos mil homens em armas. Esses effeitos estendiam-se tambem ás corporações scientificas, que na ausencia de toda a doutrina philosophica voltavam á synthese theologica e estavam de accordo com a reacção religiosa. A Academia real das Sciencias, como conta José Accursio das Neves na Historia da Revolução franceza, sob a influencia dos padres Joaquim de Foyos e José Faustino, juntamente com o estrangeiro Vandelli e o conde da Ega, votou que o general Junot fosse acclamado socio honorario. Foi-lhe enviada uma deputação, presidida pelo conde da Ega, e Junot acceitou essa homenagem da sabia corporação. Da parte da Universidade tambem o claustro votou que uma deputação viesse a Lisboa em março de 1808 a cumprimen. tar Junot; assim o conta o bispo de Vizeu, D. Francisco Alexandre Lobo: «... despachado lente por fevereiro de 1806, e desde então, com pequenos intervallos, residi como tal em Coimbra, no Collegio das Ordeus militares, até que em março de 1808 fui obrigado a ir, da parte da Universidade, cumprimentar o general Junot em Lisboa...) Assim o confessa nos seus Apontamentos biographicos. 4 Esta benevo 1 Ácerca da deputação da Universidade escrevia D. Francisco de Lemos, em carta datada de Coimbra, de 13 de janeiro de 1808, dirigida a Monteiro da Rocha: « Pelo D. Vicente fiz saber a v. s.a que com effeito executou-se a deputação academica a Junot, sem embargo de haver pessoas n’essa côrte que procuravam desvial-a Sei que ella foi approvada, mas não sei ainda se os deputados a cumpriram e como foi recebida. Elles foram incumbidos de procurarem logo a v. s.' e de o informarem do que se passapa.- Pelas noticias do correio consta aqui que lencia para com Napoleão e os seus generaes invasores derivava da acquiescencia ao restabelecimento do catholicismo antes da systematisação da reacção religiosa feita por Bonald e José de Maistre, e por Chateaubriand com idealisações romanticas. Esta corrente de reacção veiu a prevalecer na Instrucção publica, primeiramente quando Napoleão organisou a Universidade de França, pela lei de 10 de maio de 1806, e depois quando a Restauração, sob Freyssinous, chamou ao ensino os Jesuitas e sob o espirito clerical tornava Deus e o Rei o objectivo de toda a instrucção official. É d'estas tres correntes que derivam as variadas formas pedagogicas do scculo xix: umas vezes o espirito scientifico livre, embora especiallsado, da Convenção franceza; outras vezes o centralismo governativo intervindo impertinentemente na regulamentação das Escholas; outras vezes um pretendido espiritualismo em harmonia com a religião do estado transigindo com a atrazada synthese religiosa e pretendendo conciliar-se com ella. Legislase ás cegas, topando pelas vacilações do momento á falta de uma doutrina philosophica em uma ou outra d'estas não observadas correntes. A creação da Dictadura militar de Napoleão, substituindo-se á realeza, é o facto que influe sobre a marcha historica do seculo xix, emquanto ás fórmas politicas pela transigencia provisoria das Cartas constitucionaes outorgadas, e emquanto ás fórmas pedagogicas pelo regimen do monopolio universitario, que pelo centralismo administrativo chega até ao extremo da regulamentação em um Ministerio de Instrucção publica. Comte descreve lucidamente a formação d'essa dictadura: «Emquanto o exercito, plenamente nacional, estava ligado ao solo patrio e não cessara, sob a esperança continua de uma proxima liberta a ção, de participar directamente das emoções e das inspirações populares, a salutar energia do terrivel Comité pudera sustentar por uma infatigavel actividade a mais perfeita preponderancia que as guerras modernas têm apresentado da auctoridade civil sobre a força militar. Não têm chegado a Junot repetidos expressos do Imperador, expedidos depois de saber a retirada do Principe para o Brasil. Esperava-se a decisão da sorte d'este reino, mas o silencio de Junot mostra que Napoleão a reserva para tempo mais opportuno. Entretanto ha tres imperantes em Portugal: elle, o rei catholico e o principe regente. Quem será o unico ? Dividir-se-ha o infante ?» etc. (Instituto, t. XXXVII, p. 801.) D. Francisco de Lemos, que fôra novamente nomeado reitor da Universidade, não podia como padre deixar de coadjuvar por todas as formas a causa de Napoleão, que restaurara em França o culto catholico; seguia o mesmo impulso a que obedeciam o arcebispo de Evora e o governo do Patriarchado de Lisboa. succedia o mesmo quando nas diversas expedições longinquas o exercito, tornado cada vez mais extranho aos negocios interiores, e tomando necessariamente, conforme um fim mais especial e menos directo, um caracter mais determinado e menos transitorio, tendia gradualmente a identificar-se profundamente com os seus proprios chefes, no meio de populações desconhecidas, ao mesmo tempo que a sua intervenção politica devia pouco a pouco parecer indispensavel á compressão necessaria da esteril agitação social entretida por um perigoso espirito metaphysico. Era pois impossivel que o conjuncto de uma tal situação não conduzisse immediatamente á installação de uma verdadeira dictadura militar, cuja tendencia, retrograda ou progressiva, devia além d'isso, apesar da influencia natural de uma reacção passageira, depender muito, e certamente mais do que em nenhum outro caso historico, da disposição pessoal d'aquelle que fosse honrado com ella entre tantos illustres generaes que a defeza revolucionaria suscitara. Por uma fatalidade para sempre deploravel esta inevitavel supremacia, para a qual Hoche parecia tão felizmente destinado, coube a um homem quasi que estrangeiro á França, provindo de uma civilisação atrazada, e especialmente animado, sob o secreto impulso de uma natureza supersticiosa, de uma admiração involuntaria pela antiga hierarchia social; ao passo que a immensa ambição de que elle era devorado não se achava realmente em harmonia, apesar do seu vasto charlatanismo caracteristico, com alguma eminente superioridade mental, á parte a de um incontestavel talento para a guerra...) Depois d'esta explicação da dictadura militar, desgraçadamente explorada por Napoleão, Comte julga-o na sua acção historica: «Se o pretendido genio politico de Bonaparte tivesse sido verdadeiramente eminente, este chefe não se entregaria á sua bastante exclusiva aversão pela grande crise republicana, na qual não sabia vêr, como os mais vulgares declamadores retrogrados, senão a facil demonstração da impotencia organica peculiar da unica philosophia que pudera dirigil-a... Toda a sua natureza intellectual e moral era profundamente incompativel com o pensamento de uma irrevogavel extincção do antigo systema theologico e militar, fóra do qual elle nada podia conceber, sem comtudo comprehender-lhe o espirito e as condições; assim o testificam gravissimas contradicções na marcha geral da sua politica retrograda, sobretudo o que é concernente á restauração religiosa, em que, seguindo a tendencia habitual do vulgar dos reis, elle pretendia alliar, vamente sempre, a consideração ao servilismo, esforçando-se para reanimar poderes que, pela sua essencia, não poderiam nunca ficar fran camente subalternos.» ! Se a restauração religiosa deu a Bonaparte o apoio da Egreja, que assim impunha a auctoridade theocratica á acção critica do negativismo metaphysico, tambem as velhas Monarchias da Europa se conciliavam espontaneamente com o ambicioso dictador, até ao ponto de lhe lisonjearem a pueril ambição de fundar mais uma tribu realenga, porque elle destruira a nova organisação da Republica democratica, que determinava a extincção do poder real. Os dois elementos do decadente regimen catholico-feudal acharam em Bonaparte um factor do retrocesso, para combater o qual ambos se uniram depois, estabelecendo uma alliança dos varios estados da Europa, para sustarem o delirio das invasões e conquistas, cujo odio pesou por muito tempo sobre o povo francez e envolveu o ideal democratico da Revo. lução. Comte chamou em uma phrase, com o poder synthetico que só elle sabia resumir em uma palavra, orgia militar a esse desencadeamento de guerras de pilhagem e devastações a que Napoleão submetteu a Europa; os rhetoricos acobertavam este desvairamento de força sem plano com a phantasmagoria da monarchia universal, fazendo do corso sem sentimento social um continuador de Carlos Magno. Na instabilidade da Europa, Portugal viu-se no começo do seculo xix em uma situação desesperada, em que tinha em frente a depredação e a ruina; sob o governo de uma rainha dementada, exercido pela regencia de um principe herdeiro sem vontade, que se movia ás ordens da Inglaterra, era inevitavel a catastrophe, porque os nossos portos não seriam fechados á nação combatida pelo plano do blocus continental. Não se fizeram esperar as consequancias; no Monitor n.° 317, de 1807, mandou Napoleão publicar officialmente: «A queda da Casa de Bragança permanecerá como uma nova prova de que a ruina, a quem se ligar com a Inglaterra, é inevitavel.» Um exercito de invasão, commandado por Junot, entrava em novembro em Lisboa, quando D. João vi e toda a familia real portugueza, acompanhados de muitos fidalgos, se achavam já no alto mar, dirigindo-se em uma frota para o Brasil. * 1 Cours de Philosophie positive, t. vi, p. 317. 2 Em uma carta de D. Francisco de Lemos, datada de Buarcos, de 9 de novembro de 1807, dirigida a Monteiro da Rocha, falla-lhe da invasão franceza que se effectnava em Portugal como quem via n'ella um meio de destruir a preponderancia da Inglaterra, que nos absorvia : «Eu me dizia muitas vezes—urget praesentia Turni-e considerando as façanhas de que toda a Europa é testemunha aterrava-me e já me parecia vêr todo este reino occupado pelos francezes. A carta de v. s. tranquillisou-me perfeitamente. Napoleão Bonaparte quer que elle exista, e só com isto desmancha os pla- Tom. iy. 2 HIAT. UK. |