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succedia o mesmo quando nas diversas expedições longinquas o exercito, tornado cada vez mais extranho aos negocios interiores, e tomando necessariamente, conforme um fim mais especial e menos directo, um caracter mais determinado e menos transitorio, tendia gradualmente a identificar-se profundamente com os seus proprios chefes, no meio de populações desconhecidas, ao mesmo tempo que a sua intervenção politica devia pouco a pouco parecer indispensavel á compressão necessaria da esteril agitação social entretida por um perigoso espirito metaphysico. Era pois impossivel que o conjuncto de uma tal situação não conduzisse immediatamente á installação de uma verdadeira dictadura militar, cuja tendencia, retrograda ou progressiva, devia além d'isso, apesar da influencia natural de uma reacção passageira, depender muito, e certamente mais do que em nenhum outro caso historico, da disposição pessoal d'aquelle que fosse honrado com ella entre tantos illustres generaes que a defeza revolucionaria suscitara. Por uma fatalidade para sempre deploravel esta inevitavel supremacia, para a qual Hoche parecia tão felizmente destinado, coube a um homem quasi que estrangeiro á França, provindo de uma civilisação atrazada, e especialmente animado, sob o secreto impulso de uma natureza supersticiosa, de uma admiração involuntaria pela antiga hierarchia social; ao passo que a immensa ambição de que elle era devorado não se achava realmente em harmonia, apesar do seu vasto charlatanismo caracteristico, com alguma eminente superioridade mental, á parte a de um incontestavel talento para a guerra... Depois d'esta explicação da dictadura militar, desgraçadamente explorada por Napoleão, Comte julga-o na sua acção historica: «Se o pretendido genio politico de Bonaparte tivesse sido verdadeiramente eminente, este chefe não se entregaria á sua bastante exclusiva aversão pela grande crise republicana, na qual não sabia vêr, como os mais vulgares declamadores retrogrados, senão a facil demonstração da impotencia organica peculiar da unica philosophia que pudera dirigil-a... Toda a sua natureza intellectual e moral era profundamente incompativel com o pensamento de uma irrevogavel extincção do antigo systema theologico e militar, fóra do qual elle nada podia conceber, sem comtudo comprehender-lhe o espirito e as condições; assim o testificam gravissimas contradicções na marcha geral da sua politica retrograda, sobretudo o que é concernente á restauração religiosa, em que, seguindo a tendencia habitual do vulgar dos reis, elle pretendia alliar, vamente sempre, a consideração ao servilismo, esforçando-se para reanimar poderes que, pela sua essencia, não poderiam nunca ficar fran

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camente subalternos.» Se a restauração religiosa deu a Bonaparte o apoio da Egreja, que assim impunha a auctoridade theocratica á acção critica do negativismo metaphysico, tambem as velhas Monarchias da Europa se conciliavam espontaneamente com o ambicioso dictador, até ao ponto de lhe lisonjearem a pueril ambição de fundar mais uma tribu realenga, porque elle destruira a nova organisação da Republica democratica, que determinava a extincção do poder real. Os dois elementos do decadente regimen catholico-feudal acharam em Bonaparte um factor do retrocesso, para combater o qual ambos se uniram depois, estabelecendo uma alliança dos varios estados da Europa, para sustarem o delirio das invasões e conquistas, cujo odio pesou por muito tempo sobre o povo francez e envolveu o ideal democratico da Revolução. Comte chamou em uma phrase, com o poder synthetico que só elle sabia resumir em uma palavra, orgia militar a esse desencadeamento de guerras de pilhagem e devastações a que Napoleão submetteu a Europa; os rhetoricos acobertavam este desvairamento de força sem plano com a phantasmagoria da monarchia universal, fazendo do corso sem sentimento social um continuador de Carlos Magno. Na instabilidade da Europa, Portugal viu-se no começo do seculo XIX em uma situação desesperada, em que tinha em frente a depredação e a ruina; sob o governo de uma rainha dementada, exercido pela regencia de um principe herdeiro sem vontade, que se movia ás ordens da Inglaterra, era inevitavel a catastrophe, porque os nossos portos não seriam fechados á nação combatida pelo plano do blocus continental. Não se fizeram esperar as consequancias; no Monitor n.o 317, de 1807, mandou Napoleão publicar officialmente: «A queda da Casa de Bragança permanecerá como uma nova prova de que a ruina, a quem se ligar com a Inglaterra, é inevitavel.» Um exercito de invasão, commandado por Junot, entrava em novembro em Lisboa, quando D. João VI e toda a familia real portugueza, acompanhados de muitos fidalgos, se achavam já no alto mar, dirigindo-se em uma frota para o Brasil.*

1 Cours de Philosophie positive, t. vi, p. 317.

2 Em uma carta de D. Francisco de Lemos, datada de Buarcos, de 9 de novembro de 1807, dirigida a Monteiro da Rocha, falla-lhe da invasão franceza que se effectnava em Portugal como quem via n'ella um meio de destruir a preponderancia da Inglaterra, que nos absorvia:

«Eu me dizia muitas vezes-urget praesentia Turni―e considerando as façanhas de que toda a Europa é testemunha aterrava-me e já me parecia vêr todo este reino occupado pelos francezes. A carta de v. 8. tranquillisou-me perfeitamente. Napoleão Bonaparte quer que elle exista, e só com isto desmancha os pla

HIST. UN.-Tom. iv.

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D. João vi obedeceu ao plano do governo inglez, que assim ficava com o Brasil aberto a todas as suas mercadorias e fazia do territorio portuguez o campo da sua resistencia no continente europeu. Já em carta de 5 de julho de 1801 escrevera Monteiro da Rocha a D. Francisco de Lemos: «O peor de todos os conselhos é o da retirada para o Brasil. É o mesmo que lançar-se ao mar na tormenta com o medo de naufragar d'ahi a pouco.» Seguiu-se o peor conselho; D. João VI, em uma proclamação á partida, recommenda ao povo que receba os invasores francezes como amigos, e deixou nomeada uma Regencia, composta de oito cavalheiros, assistidos no seu poder executivo pelo encarregado dos Negocios de Inglaterra, sir Carlos Stuart. ' Apenas se esboçam estes factos porque d'elles derivam todas as transformações que soffreu a nacionalidade portugueza: 2 o Protectorado absorvente da

nos que tinha formado a Inglaterra sobre a nossa imaginada ruina.- Mas se os inglezes nos fizerem hostilidades por esta accessão á causa do continente e por este novo tratado que se vae a fazer com a França? Como nos defenderemos? A Figueira é um porto de consideração, mas achava-se sem polvora e só ha tres dias lhe foi remettido do Porto um barril. Assim estarão os mais.-Permitta-me V. s.a que eu arrisque aqui uma ideia. Para que 34 mil francezes e mais 28 mil castellanos a marcharem para as nossas fronteiras? Não sabem que o Principe regente nosso senhor tinha tomado a resolução de se não defender? Parece pois que se pretende encobrir com este pretexto a guerra que se vae fazer aos inglezes no sitio de Gibraltar; é o interesse da Hespanha e da França e é o que resta a fazer no continente.» (Institute, t. xxxvii, p. 803.)

Com este espirito de hostilidade contra a Inglaterra, D. Francisco de Lemos justificava a sua sympathia pelo restaurador do culto catholico em França. 1 Eram os membros da Regencia:

D. Antonio José de Castro, patriarcha eleito, bispo do Porto;

Francisco de Mello da Cunha Mendonça e Menezes, marquez de Olhão e conde de Castro Marim;

Francisco Maria José de Sousa Coutinho Castello Branco Menezes, marquez de Borba e conde do Redondo, presidente do Erario;

D. Antonio José de Menezes e Sousa, Principal diacono da Patriarchal; Dr. Ricardo Raymundo Nogueira, reitor do Collegio dos Nobres, antigo lente da Universidade de Coimbra;

D. Miguel Pereira Forjaz, conde da Feira, tenente general, ministro da guerra, marinha e estrangeiros;

José Antonio Salter de Mendonça, desembargador, secretario de estado dos Negocios do reino e fazenda;

Alexandre José Ferreira Castello, desembargador.

2 Em um opusculo inedito de José Agostinho de Macedo, intitulado Pareçer dado ácerca da situação e estado de Portugal depois da sahida de Sua Alteza real para o Brazil, e invasão que n'este Reino fizeram as tropas francezas, vem a apreciação politica do facto da fuga de D. João VI:

Inglaterra, sob o governo sanguinario de Beresford, e a Revolução de 1820, que sacudiu esse protectorado e proclamou a Soberania nacional na Constituição de 1822; a restauração da monarchia absoluta em 1823 e a transigencia da Carta outorgada em 1826, com todo o seu cortejo de reacções, ora do realismo e legitimismo contra o liberalismo em 1829, ora do liberalismo triumphante restaurando a Carta em 1834, em 1842 até aos ministerios de resistencia e fusão dos partidos militantes em 1851. N'estes successivos abalos os acontecimentos poderam mais do que os homens; as tres emigrações forçadas de 1818, 1823 e 1829 relacionaram os nossos homens publicos com a civilisação franceza e ingleza, de que alguma cousa aproveitaram para as reformas administrativas, pedagogicas e litterarias; extinguiram-se as ordens monasticas, que boçalisavam a nação pela influencia espiritual e a empobreciam pelo parasitismo temporal do ascetismo inerte. Mas avançava-se sem plano; ora irrompiam as aspirações da tradição revolucionaria, que os absolutistas combatiam como manejos de Pedreiros-livres e que com rancor alcunhavam de Pedreirada, ora se estacava no timorato e orthodoxo conservantismo da Restauração.

Fallando da incapacidade e mesmo impossibilidade dos governos organisarem um systema de educação geral, Comte lembra a conve

«O primeiro resultado da inconsiderada paz de Tilsit foi a invasão da Hespanha e Portugal; n'este tratado se começou a divisar o plano de Bonaparte sobre a monarchia universal. O orgulho e ambição que o deslumbra nunca lhe fez conhecer a desproporção dos meios que toma com o irrealisado fim do abatimento da Inglaterra pela sua exclusão do continente. Bonaparte é homem de muita malicia, mas de nenhum estudo e de limitados talentos. É certo que se affiança sobre os effeitos de suas primeiras missões, porque prepara um punhado de malvados no meio de uma nação. Não se lembra que roubando e captivando os monarchas indispõe os povos.

«O Principe de Portugal podia mallograr os seus ardís até depois de ter dentro da capital um exercito de mendigos salteadores. Evadiu-se ao seu refalsado furor, e Bonaparte com este furor abateu e quasi arruinou o mesmo reino a que chama conquista e possessão sua. Deixou de ser reino; e quem poderá resolver o problema :-quando e como o poderá ainda ser?»

Depois mostra as consequencias immediatas:

«...

in

esta destruição enfraquece as Potencias do continente e só engrossa finitamente o poder, a opulencia e a soberania da Inglaterra.- Se a Inglaterra ha muito tinha intentado para utilidade sua fazer por politica o que agora um impeto inconsiderado, ou, o que é mais verdade, um plano abortado lhe foi metter nas mãos muito á medida do seu desejo, podendo até esta época desvanecer a esperança de o conseguir. A lisongeira pintura do discurso do immortal Pitt em 1800 não offerece mais que uma especulação brilhante, que deslumbra por um

niencia de aperfeiçoar os esboços iniciados nos estabelecimentos pedagogicos da Convenção:

É preciso sustentar com cuidado, aperfeiçoando-os tanto quanto o permittem as luzes actuaes, os diversos estabelecimentos publicos, fundados ou regenerados pela Convenção, para a alta instrucção especial, porque elles contêm preciosos germens espontaneos para a reorganisação ulterior da educação geral. Mas tudo o que esta grande assembléa tinha destruido deve hoje ser supprimido definitivamente, sem exceptuar as Academias, mesmo scientificas, cuja funesta influencia mental e moral tanto tem justificado, depois da sua restauração, a sabia abolição inicial.» 1

Desde que Napoleão, tornado imperador, restaurara o regimen catholico-feudal, entrava no seu plano de retrocesso o restabelecer as Universidades e Academias, como um meio de intervir na direcção da mentalidade regulamentando-as. Atacava a obra pedagogica da Revolução, dando-lhe uma fórma de monopolio do estado. Pelo seu aspecto centralista esta phase do ensino influiu sobre todos os paizes da Europa, que foram desde a Restauração até ao presente assistindo á absorpção do regimen da Instrucção publica pelos governos, privados de toda a missão e competencia philosophica. Esboçamos rapidamente essa

momento, porque conhecia este politico que realisando-se alcançaria a Inglaterra a maior e mais vantajosa de todas as victorias e augmentava a somma dos seus interesses até ao infinito. É formoso o quadro de uma nova Lisboa no interior do Brasil, de novas conquistas, novas leis, novo commercio; este projecto sahiu primeiro da cabeça do maior politico de Portugal, Antonio Vieira, mas nunca se realisaria se a supposta e até agora não vista força o não obrigasse; e o para sempre dia memoravel 30 de novembro de 1807 deu nova face ao mundo..

«A conservação do Principe no Brasil assegura á Inglaterra para sempre o senhorio absoluto dos mares; dá um consumo infinito ás suas manufacturas em um imperio creado de novo e que necessita de tudo: indemnisa-a da perda (se alguma sente) do vedado commercio continental; obriga por termos as outras nações a haverem das mãos dos Inglezes todos os generos coloniaes ou a soffrerem privações continuas; esta conservação offerece aos Inglezes dobrados meios de perpetuarem a guerra e de continuarem o fatal bloqueio do continente, em que os povos estalarão e com terrivel e espantosa reacção cahirão sobre a origem e causa dos males do mundo; esta conservação offerecerá aos Inglezes novos recursos para o commercio e defeza das suas possessões orientaes. Os seus transportes, as suas esquadras farão a sua primeira escala pelos portos do Brasil, ficando-lhes mais commoda a navegação do que lhes ficaria demandando primeiro a ilha de Santa Helena e depois o Cabo, sendo por tudo isto a emigração do Principe para o Brasil vantajosa á Inglaterra e funesta a todos os outros povos.»

1 Système de Politique positive, t. 1, p. 123.

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