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QUARTA ÉPOCA
ЁРОСА

(SECULO XIX)

A TRANSIÇÃO POLITICA DAS CARTAS
E O REGIMEN DA ESPECIALIDADE SCIENTIFICA

CAPITULO I

A crise politica e pedagogica do seculo XIX

O seculo actual é um prolongamento do seculo XVIII emquanto á perturbação revolucionaria.—As guerras napoleonicas desviam a Revolução da sua phase reorganisadora.—Prevalecimento da Dictadura militar e sua influencia sobre a constituição dos dois Poderes.-A Universidade de França perde a sua autonomia tradicional, mas concentra em si o monopolio exclusivo da Instrucção publica.-Os typos das Escholas Polytechnica e Normal da Convenção franceza definem a phase moderna da organisação do ensino na Europa. Na reacção contra as invasões napoleonicas as Monarchias absolutas transigem com a liberdade pela outorga de Cartas constitucionaes.— Retrocesso determinado pela Santa Alliança.-Versatilidade politica por falta de uma verdadeira doutrina.—Inanidade pedantocratica: Ideologismo politico de Jornalistas, Advogados e Deputados.-A primeira necessidade do nosso tempo é a reorganisação do Poder espiritual.—Falta de pensamentos geraes nos sabios modernos: incapazes da missão social d'essa reorganisação. Falta de sentimentos elevados dos artistas manifestada nos delirios estheticos do Ultra-Romantismo.-A falta de um ponto de vista synthetico faz preponderar o regimen da especialidade scientifica.-Constituição incessante de Sciencias concretas separadas de toda a vista de conjuncto. Depois da queda de Napoleão a Restauração conserva o regimen universitario e chama os Jesuitas ao ensino publico.-A hypocrisia official do espiritualismo na sciencia.-A fórma official do espirito revolucionario sob a apparencia do regimen parlamentar proprio da Inglaterra.- Commissão de Instrucção publica junto do Governo.-A creação de um Ministerio de Instrucção publica.-Questões de liberdade de ensino e da intervenção do Estado. O phenomeno do Proletariado e as novas doutrinas do Socialismo. As Sciencias especiaes e as applicações immediatas, coincidindo HIST. UN.- -Tom. IV.

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com o desenvolvimento da evolução industrial.—Rasão do prevalecimento do ensino polytechnico.-As Escholas industriaes ou de Artes e Officios.Ensino popular superior.-A idéa da suppressão das Universidades.-As idéas da Convenção na organisação pedagogica apresentadas em Portugal por Garção Stockler.- Combatidas em Portugal e renovadas no estabelecimento da Instrucção publica no Brazil.-Fundação de Escholas especiaes. -Mousinho de Albuquerque apresenta ás Côrtes de 1822 um Plano de Instrucção publica, mais ou menos segundo as fórmas da Convenção.-A reacção absolutista em 1823: o reitor Furtado de Mendonça reclama a reforma da Universidade. As idéas de Candido José Xavier sobre as Escholas de Artes só tarde são aproveitadas.- A grande reforma geral de Instrucção publica decretada em 2 de novembro de 1833.-Garrett realisa esse pensamento ainda segundo o espirito da Convenção. Da mesma corrente revolucionaria derivam os planos de uma Universidade portugueza por Guilherme Dias Pegado e por Figueiredo de Almeida.-A Associação dos Amigos das Lettras e a creação do Instituto das Sciencias physicas e mathematicas.-A creação de um Conselho superior de Instrucção publica em Lisboa em 1835.- Luctas da Universidade contra esta absorpção do governo e contra o desenvolvimento das Escholas polytechnicas.—A Revolução de Setembro adopta as fórmas pedagogicas da Convenção.- Passos Manuel leva á pratica os planos do vice-reitor da Universidade, José Alexandre de Campos.-Venceu a Universidade.-A equiparação das Escholas medicas de Lisboa e Porto com a Faculdade de Medicina.-A organisação da Instrucção publica pelo decreto de 20 de setembro de 1844.- A critica das reformas pedagogicas pelo academico Ferreira Campos.-A iniciativa da Academia real das Sciencias em 1857.-A fundação do Curso Superior de Lettras.-A idéa de um Ministerio de Instrucção publica em 1862.— Succedem-se os planos pedagogicos e as reformas da Instrucção publica, sempre no espirito de especialidade scientifica, e na suppressão das iniciativas individuaes.-Base essencial para uma reforma definitiva: A Sciencia tornando-se philosophica e a Philosophia fundando-se na Sciencia.

A correlação das instituições politicas com as pedagogicas, que se torna patente em todas as épocas de grandes transformações, é em uma fórma concreta a expressão dos dois Poderes, o temporal e o espiritual, que mutuamente se influem á medida que avançam para se constituirem de um modo menos empirico e menos ficticio. Vimos no fim do seculo XVIII como essa prolongada crise da desorganisação dos dois Poderes attingiu no momento organico da Revolução franceza a comprehensão clara do seu destino: a proclamação da republica sobre as ruinas do regimen feudal, e o estabelecimento do ensino obrigatorio, gratuito, e de Sciencias applicadas, pela Convenção, diante do esgotamento do regimen theologico. Todo o negativismo que caracterisa a actividade critica d'esse seculo terminara a sua funcção demolidora;

mas pelos elementos positivos que se foram accumulando desde as duas renascenças, pelo desenvolvimento das sciencias naturaes e pela elevação do proletariado pelo trabalho livre, as novas bases da ordem foram entrevistas pela Convenção: prevalecia a liberdade politica e a liberdade de consciencia. O seculo findava esboçando apenas a sua obra fundamental; uma edade nova começava cheia de germens fecundos, de esperanças. Quem fizesse então vaticinios sobre o auspicioso seculo XIX não ousaria prevêr a falencia fraudulenta que o fez mentir á sua missão social, entregando as instituições politicas aos partidos medios e esgotamento do systema parlamentar, e as instituições pedagogicas a uma fragmentação de sciencias especiaes divorciadas de toda a dependencia e destino philosophico. É por isso que a instabilidade social e a incoherencia mental, que tanto revolucionaram a sociedade europêa em todas as suas crises historicas do seculo XII ao XVIII, encontraram n'este nosso seculo que finda sómente soluções provisorias: as reacções conservadoras dos ministerios de resistencia, sustentadas pelos ideologos politicos, e uma instrucção publica monopolisada pelo estado com o fim de actuar sobre as concepções, mantendo á custa do orçamento os estereis declamadores metaphysicos. Acompanhando a marcha do seculo XIX observa-se que as instituições politicas, depois da Revolução franceza, soffreram nos estados da Europa modificações profundas no intuito de regressarem ao passado ou de reagirem contra as crises economicas que surgiam. Na Instrucção publica europêa reflecte-se a agitação d'esta instabilidade, chegandosa ao ponto de serem reintegrados os Jesuitas nas suas funcções docentes, e de se adoptarem as fundações pedagogicas da Convenção nas Escholas polytechnicas como fórma definitiva da instrucção superior coexistindo com as esgotadas Universidades.

Contra a reorganisação dos dois Poderes estabeleceu-se na Europa a reacção das monarchias para a restauração do absolutismo, e a reacção religiosa contra a liberdade de consciencia cooperando com a auctoridade temporal para conseguir se a rehabilitação da Companhia de Jesus. Estas duas reacções imprimiram á marcha social movimentos que determinaram resultados imprevistos; assim a França republicana, achando colligada militarmente a Europa, viu-se força da a crear o seu exercito para a defeza nacional, mas os seus triumphos incomparaveis foram causa de que um general se investisse de uma dictadura soberana e se arrojasse ao desvairamento das conquistas. A intervenção de Bonaparte na marcha inicial d'este seculo foi uma perturbação eternamente deploravel para o progresso humano, porque dif

ficultou o estabelecimento normal da ordem, fazendo reviver os velhos poderes, o da monarchia emquanto aos symbolos theatraes com que arreiou a sua pessoa, e restabelecendo o culto catholico como meio de ter como seu sustentaculo moral a egreja e todos os seus disciplinados sectarios. Cournot consubstancia em poucas linhas esta acção perturbadora:

Reconheçamos desde já que, se a marcha regular do seculo se complicou e perturbou por este grande accidente que se chama a Revolução franceza, tambem o curso natural e regular da Revolução franceza se achou desde logo, e por toda a serie das suas phases, complicado e perturbado por um outro incidente fortuito, que consiste na apparição d'este homem extraordinario, capaz de levar a audacia até querer subjugar a Revolução e o seculo. Aqui temos em certa fórma como que a notar a trajectoria de um planeta para o qual a força perturbadora não cede em intensidade á força principal. » 1

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Esta força perturbadora começa por atacar a fórma impessoal da constituição republicana, impondo a dictadura militar e revestindo-se do perstigio da soberania imperial; nos seus delirios de invasões e de conquistas Napoleão fórça as monarchias da Europa continental e insular a colligarem-se contra elle; sobre a sua derrota opera-se o retrocesso da Restauração do absolutismo, em 1814, e por essa outra insensata e desvairada perturbação dos Cem-Dias torna-se mais forte a segunda Restauração de 1815, em que o seculo XIX é comprimido sob a retrogradação systematica da Santa Alliança dos Reis contra os Povos, que prevaleceu até à revolução democratica de 1848, tendo-se sustentado pela cedencia de liberdade politica a titulo de regia generosidade pelas Cartas outorgadas. Mas não termina aqui a acção perturbadora se notarmos que a tradição napoleonica reviveu depois de 1848, e explorando a nova corrente do socialismo foi encontrar na agitação do proletariado as condições para a soberania plebiscitaria do segundo Imperio, que para se manter na insolvencia moral teve de recorrer ás aventuras da guerra, como a da Criméa, do Mexico, da Italia e da Allemanha, em que se afundou para sempre. N'esta terrivel instabilidade para a fundação do novo poder temporal compativel com a dignidade da natureza humana recorreu-se a uma alta provisoria: foi a adopção do regimen transitorio das Cartas outorgadas e uma šimulação das fórmulas parlamentares da Inglaterra, que os ideologos politicos e doutrinarios proclamavam desde o seculo XVIII como uma

1 Considérations sur la Marche des Idées et des événements, t. 11, p. 395.

solução definitiva da fórma de governo. As idéas scientificas sobre o phenomeno politico foram sempre tratadas por pensadores alheios a toda a acção temporal; e aquelles que exerceram o poder, ministros ou chancelleres, da inconsciencia do seu empirismo e ausencia de plano, consideraram sempre com supremo desdem todas as doutrinas sociologicas como estereis senão perigosas. Veremos como sob esta apprehensão os governos empiricos do nosso seculo trataram de apoderarse da Instrucção publica, de centralisal-a, monopolisando-a, regulamentando-a e imprimindo-lhe um espirito mais ou menos conservantista ou reaccionario.

Quando a Revolução franceza chegara ao ponto decisivo em que proclamava com sublime coherencia a nova fórma politica que vinha logicamente após a ruina do regimen absoluto, tambem creou a nova fórma da Instrucção publica dos tempos modernos nos seus tres gráos: primario, abrangendo os conhecimentos indispensaveis a todos os operarios em qualquer actividade; secundario, comprehendendo os conhecimentos mais geraes; e terciario, ou superior, em que novas sciencias vulgarisavam conhecimentos especiaes de applicação immediata. (Decreto de 15 de setembro de 1793.) Apesar de todas as perturbações que soffreu a Europa estes tres gráos do ensino ficaram constituindo bases fundamentaes de toda a organisação pedagogica. Com o mesmo espirito revolucionario, em que se reconhecia por onde se podia reorganisar o Poder espiritual, a Convenção decretou em 25 de dezembro de 1793 a instrucção obrigatoria para o primeiro gráo, dando-lhe sancção pela lei de 7 de novembro de 1794, no prologo da qual, escripto por Lakanal, se estabelece o principio, tambem hoje unanime, da instrucção gratuita. É impossivel comprehender a organisação da instrucção publica do seculo XIX em todos os estados da Europa se forem desconhecidas as fundações pedagogicas da Convenção; tudo deriva d'aquelle genial impulso, que não foi fecundado porque a creação de escholas ou de institutos subsequentes obedeceu apenas a um mesquinho espirito de especialidades scientificas. Combateu-se e extinguiu-se a fórma do poder temporal fundada pela Convenção; mas seguiu-se inconscientemente e inevitavelmente a fórma esboçada para o poder espiritual, copiando ou reproduzindo as suas instituições pedagogicas. Torna-se necessario apontar estes novos typos, que são a norma da instrucção publica moderna. Pela lei de 27 de setembro de 1794 foi creada a Eschola Polytechnica; Lomblardie, director da Eschola de Pontes e Calçadas, tivera a idéa inicial da creação de um ensino scientifico geral destinado a engenheiros; communicada a idéa a Monge,

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