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Onde, fe a algum bem fubo, logo deço;
E affi ganho, e affi perco a confiança:
E affi de mi fugindo traz mim ando:
E affi me tem atado huma vingança
Como Ixiao, tao firme na mudança.
Quando a vifta fuave, e inhumana,
Meu humano defejo, de atrevido
Commetteo, fem faber o que fazia ;
(Que da fua belleza foi nafcido
O cego moço, que com fétta infana
O peccado vingou desta ousadia)
Afora efte penar, que eu merecia
Me deo outta maneira de tormento.
Que nunca o penfamento,

Voando fempre de huma a outra parte,
Deftas entranhas triftes bem fe farte;
Imaginando como, e famulento.
Que come mais, e a fome vai crefcendo;
Porque de atormentar-me nao fe aparte:
Affi que para a pena eftou vivendo.
Sou outro novo Ticio, e nao me entendo.
De vontades alhêas que eu roubava

E que enganofamente recolhia
Em meu fingido peito me mantinha :
O engano de maneira lhes fingia,

Que defpois que a meu mando as fobjugava,
Com amor as matava, que eu nao tinha.
Porém logo o caftigo que convinha
O vingativo amor me fez fentir

Fazendo-me fubir

,

Ao monte da afpereza que em vós vejo,

Co' o pezado penedo do defejo,

Que do cume do bem me vai cahir.
Torno a fubi-lo ao defejado affento:
Torna a cahir-me; em vão, em fim pelejo.
Sifypho, nao te efpantes defte alento,
Que as coftas o fubi do foffrimento.

Defta arte o fummo bem fe me offerece
Ao faminto defejo, porque finta

A perda de perdê-lo mais penofa:

Bem como o avaro, a quem o fonho pinta
O achado de hum thefouro, onde enriquece
E farta a fua fede cobiçofa;

E acordando, com furia prefurofa

Vai o fitio cavar com que fonhava :
Mas tudo o que buscava

Lhe converte em carvão a desventura:
Alli fua cobiça mais fe apura,

t

Por lhe faltar aquillo que efperava :
O amor affi me faz perder o fifo;
Porque aquelles que eftao na noite escura
Nao fentiriam tanto o trifte abisso,

Se ignoraflem o bem do Paraifo.

Canção, nao mais; que já naó fei que diga: Mas porque a dor me feja menos forte, Diga o pregao a caufa desta morte.

CANÇAO III.

JA' a roxa manhãa clara

As portas do Oriente vinha abrindo,

Dos montes descobrindo

A

A negra escuridaó da 'luz'aváragam c ́simam
O Sol, que nunca pára,

Da fua alegre vifta faudofo, os cl
Traz ella prefurofo

Nos cavallos canfados do trabalho,
Que refpiram nas hervas frefco Corvalho
Se eftende claro, alegre, e luminofo.
Os pallaros voando,

De raminho em raminho vao faltando ;
E com fuave e doce melodia

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O, claro dia eftao manifeftando."
A manháa bella, amena,

Seu rosto defcobrindo, a efpeffura
Se cobre de: verdura

Clara, fuave, angelica, ferena.

Oh deleitofa pena T

Oh effeito de amor alto, e potente!

Pois permitte, e confente,

Que ou donde quer q eu ande, ou donde efteja, O feraphico gefto fempre veja,

Por quem

2-1

de viver trifte fou contente.

Mas tu, Aurora pura,

De tanto bem dá graças à ventura,

Pois as foi pôr em ti taó excellentes
Que reprefentes tanta formofura.

A luz fuave e leda
>

,

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1

A meus olhos me moftra, por quem mouro;

Com os cabellos de ouro,

Que nenhum ouro iguala, fe os remeda.

Efta a luz he que arreda

A negra efcuridão do fentimento

Ao doce penfamento:

Os orvalhos das flores delicadás ·

.1

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Sao nos meus olhes lagrimas canfadas,
Que eu chóro co o prazer de meu tormento.
Os paffaros que cantam,

:,་་ ་

Meus efpiritos fao, que a voz levantam,
Manifeftando o gefto peregrino,

H

Com tao divino fom, que o Mundo espantam.
Affi como acontece

A quem a chara vida eftá perdendo
Que em quanto vai morrendo,
Alguma vifaó fanta lhe apparece;
A mim em quem
fallece

A vida, que fois vós, minhá Senhorá,
A efta alma que em vós mora

(Em quanto da prifaó fe eftá apartando )
Vos eftais juntamente aprefentando
Em fórma de formofa, e roxa Aurora.
Oh ditofa partida !

Oh gloria foberana, alta," ́e fubida !

Se mo nao impedir o meu defejo,

Porque o que vejo, em fim, me torna a vida!

Porém a natureza

Que nefta pura vista se mantinha

Me falta tao afinha

Como o Sol faltar foe á rédőhdéza.

Se houverdes que he fraqueza

Morrer em tao penofo, é trifte "eftado','

Amor ferá culpado,

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Ou vós, onde eller vive to ifento,qu

Que caufaftes tao largo apartamento,

Por

Porque perdeffe a vida co' o cuidado.

Que fe viver nao poffo

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Homem formado fó de carne, e offo ;

Efta vida que perco, amor ma deo

Que nao fou meu: fe morro, o damno he voffo. Cançaó de cyfne, feita em hora extrema,

Na dura pedra fria

Da memoria, te deixo em companhia
Do letreiro da minha fepultura :

Que a fombra escura já me impede o dia.

CANÇA O Iv.

Ao as ferenas agoas

Do Mondego descendo

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E manfamente até o mar nao param:
Por onde as minhas mágoas

Pouco a pouco crefcendo,

Para nunca acabar fe começaram.
Alli fe me moftráram

Nefte lugar ameno,

Em que inda agora mouro >

Tefta de neve, e de ouro;
Rifo brando

e fuave; olhar fereno;

Hum gefto delicado,

Que fempre na alma me estará pintado.

Nefta florida terra,

Leda, frefca, e ferena,

Ledo 9

e contente para mi vivia ; Em paz com minha guerra, Gloriofo co' a pena

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