Com que inclitas ideias se revestem, Só teem o agudo ouvir aberto à l'arma, Só teem do irado olhar cravado o lume Na ardente bala ou carniceira brecha.
¿Quem não vê pois, que em quadras tão esquivas A lira emmudeceu, parou a pluma, Emmagreceu a língua, que se nutre De ócio de vates, de ócio de oradores Que altiloquos ressoam? No santuário Das letras, puro e até então guardado (Nessa hora de atalaias desprovido), Pelas portas lhe entrou, mal-agourada, A ignorância ladeada da caterva Dos erros, das maléficas doutrinas.
As mãos se deram sempre pelo mundo Esses dous feios brutos, tragadores
Do engenho, e do primor das boas artes... Assim foi descuidada e embrutecida
A nossa lingua ilustre. Os Portugueses, Co' a pertinaz tormenta desgarrados Da bem assinalada antiga esteira, Perderam o bom tino ao saber puro Que em eras de Camões, eras de Barros, Grangeado tinham nos liceus da Europa.
¡ Loucos, que o tempo esperdiçais sem fruto Em descompôr da lingua o molde e a graça ! Cansai-vos antes em lavrar os campos
Da clássica abastança. Achareis barras De ouro mais puro e rico, que êsse cobre Que baixos gandaiais em sujos regos. Parvos! que enxovalhando com posturas (1). O formoso carão da pátria língua, (Formoso inda que antigo, qual a Vénus De Médicis, antiga e sempre bela)
Cuidais que hão remoçá-la êsses rebiques. Co' a demão que lhe dais, mui presumidos, Lhe estragais as feições, tirais-lhe a grave Majestade, e não sei que brando termo Que inda em anos crescidos bem parece...
¿Que homem há aí, tão bronco em nossa história, Que ignore as perdas que custou à lingua O reinado da insipida ignorância? Esse estúpido monstro as fuscas asas Despregou e cobriu co' elas o Reino; Tapou o sol, pôs noite nos engenhos, Bafejou anagramas, forçou glosas, Inçou de ocos conceitos predicáveis Os púlpitos; e as aulas, de sofismas; E degradou a lingua de nobreza, Despindo-a de afouteza e bizarria.
¡Sacudamos das falas, dos escritos, Tôda a frase estranjeira, e frandulagem Dessa tinha, que comichona afeia O gesto airoso do idioma luso! Quero dar que em francês haja formosas Expressões curtas, frases elegantes; Mas indoles dif'rentes têm as linguas; Nem tôda a frase a tôda a língua ajusta.
Se por fôrça de fado, ou por penúria, Forçados somos a espremer dos livros Franceses o alimento das sciências; Se, como na palestra (1) empoeirada, Vamos lutar contra a ignorância bruta No ginásio francês, tomemos o uso Dos antigos atletas, que ao saírem Do pugilato ou férvida carreira, A poeira dos fatos sacudiam
E, banhando-se em líquidas correntes Do Ilisso (que ali perto com sereno Passeio alegra as margens estudiosas) Os corpos asseavam diligentes.
(1) Lugar onde lutavam os atletas.
Assim vi sempre o literato Erilo. Depois de revolver francês volume, Desempoar-se da estranjeira frase Co' espanador de Barros ou Vieira.
(Da Arte Poética, Parnaso Lusitano, Paris, 1826, pág. 69 e ss.)
António das Neves Pereira
Ao se perdem os vocábulos pela muita frequência do seu uso, antes
esta é a que mais os fixa e estabelece. Não são êles, como alguns dizem, como a moeda, que pelo muito manejo se desgasta e faz safada; símil falso, e mal aplicado a êste propósito.
A interrupção do uso dos vocábulos essa é a mais verdadeira causa que os faz degenerar, perder o seu lustre e estimação, até finalmente ficarem em esquecimento.
De outra sorte, se só o muito uso pudesse aviltar as palavras, já hoje não teríamos nem as palavras sol, planta, luz, flor, etc., tão cotidianas e ordinárias. Tôdas teriam caído em baixeza, tendo durado tantos séculos desde que há Portugueses e Monar
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