Imagens das páginas
PDF
ePub

X

«O CANTO DA SEREIA»

II

velho João Cabaça deu a Pedro os seus conselhos. Que era de sereia o canto que êle ouvira não havia dúvida. Era preciso que êle deixasse de passear à noite pela praia para fugir à tentação de a escutar, visto ser mais fácil evitar o perigo do que vencê-lo.

E nesta ordem de ideas procurou convencer o seu companheiro de lidas marítimas a esquecer o que ouvira e dar outro rumo aos seus devaneios.

Pedro não obedeceu.

O canto seduzia-o. Era a atracção do maravilhoso, a que a história do velho pescador veio trazer novos incentivos. Não pôde por isso abandonar as suas digressões nocturnas na es

perança de tornar a ouvir a voz que o seduzia. Vagueava por tôda a praia, pelas horas mortas da noite, ouvidos atentos, os olhos presos à vastidão imprecisa das águas. Demos a palavra a Júlio Denis, que mostra, mais uma vez, nesta descrição, o poder mágico da sua paleta de paisagista:

«A praia estava, emfim, completamente de

serta.

«O vento tinha virado a Oeste. Nuvens cada vez mais negras e grandes como montanhas, levantavam-se do Ocidente, semelhantes a informes monstros marinhos, surgindo do seio das águas. Bandos de aves aquáticas ora baixavam o vôo ligeiro até roçarem com as àsas pela superfície das ondas, ora se erguiam a perderem-se de vista no espaço nebuloso, onde por algum tempo volteavam em curvas complicadas; depois soltando gritos agudos e lastimosos, desciam de novo em parábolas de extensa curvatura, para colherem do Oceano a presa que com o olhar penetrante haviam descoberto da altura em que se libravam.

«Por tôda aquela imensa amplidão de água nem uma vela, nem um pequeno barco sequer; na longa planície de areia que forma esta povoação da costa, eram os palheiros escuros e fechados, as lanchas em sêco ou alguma embarcação, ainda de menor lote, a única di

versão que encontrava a vista cansada da monotonia da perspectiva (1).

«Haviam chegado as horas talhadas para o descanso e os pescadores, que tinham com o sono antigas dívidas a solver, encerravam-se nas acanhadas recoletas, onde quási miraculosamente se albergam numerosas famílias desta pobre gente e, dentro em pouco, estavam experimentando quanto é fácil a um espírito tranquilo e a um corpo fatigado encontrarem as restauradoras delícias do sono, ainda que em camas bem pouco de apetecer.

«A Pedro do Ramires, porém, sobrava-lhe imaginação para o não deixar, tão fàcilmente como os seus companheiros, saborear êste prazer. As horas da noute eram as suas horas predilectas, eram as suas horas de vida. Então podia êle, sem despertar estranhezas, ficar imóvel a olhar para as ondas, essas suas companheiras inseparáveis, com as quais brincara tantas vezes em criança e que pareciam conservar ainda para êle uma linguagem misteriosa, corresponder-lhe, saudá-lo como a um antigo conhecimento.

«Aquele carácter, essencialmente contemplativo, sentia-se livre e desafogado então. Não

(1) Deviam ser os chamados barcos do mar, diversos dos barcos de fundo chato empregados na Ria.

havia ninguém a expiar-lhe no semblante o refluxo dos encontrados pensamentos que de contínuo o assaltavam; ninguém a preguntar-lhe a causa, por êle mesmo talvez ignorada, dum sorriso instantâneo, duma melancolia mais duradoura, e às vezes até duma lágrima, em que a sua tristeza habitual parecia de quando em quando condensar-se, raras crises que por mo'mentos lhe desanuviavam o espírito visionário.

«Por isso caminhava longas horas pensativo pelo êrmo da costa.

«Parecia procurar acalmar, por esta forma, a vaga inquietação que sentia em si. Como se aquela ânsia que o devorava fôra a necessidade de movimento!

«Pobre alma! Iludia-se na sua ignorância. A actividade a que tendiam as suas aspirações não era aquela; não se realiza assim. O movimento dos afectos, as lutas da inteligência, o estímulo da glória, os gozos da vida do espírito, tudo isso ela procurava, mas, cega, andava tateando um caminho bem longe do que a devia conduzir ali. Como não teria de sucumbir no empenho! ¿Como não cairia exausta de fôrças, e abatida pelo desalento? ¿Que vale ao febricitante a incoerente convulsão em que se revolve no leito? Mitigam-lhe, acaso, êsses ર movimentos o angustioso escaldar do fogo que lhe circula nas veias? No mesmo caso estava Pedro ao procurar satisfazer os seus indeci

fráveis anelos, correndo pela beira-mar, às vezes possuido de uma verdadeira alucinação.

«Esta noite, em que tivera lugar o diálogo entre êle e o velho João Cabaça, foi uma daquelas em que Pedro do Ramires prolongou até horas adiantadas o seu passeio habitual, seguindo para o sul da costa.

«Absorvido em seus pensamentos, caminhou insensivelmente a passos rápidos e desiguais, até deixar a uma grande distância os palheiros da povoação do Furadouro.

«Por êste tempo já a escuridade da noite era completa, antecipada, como fôra, pelos cúmulos de nuvens que, partindo do Ocidente, se tinham, em pouco, espalhado por tôda a abóbada celeste.

«O jovem pescador parou emfim; parou e pôs-se a olhar vagamente para o mar, como se de mistura com o clamar das ondas, esperasse receber alguma voz que lhe fôsse destinada.

«Depois quasi se deixou caír na areia da praia e, pousando a cabeça nas mãos encruzadas, deitou-se e fitou os olhos nas nuvens, como se nas formas irregulares que elas desenhavam no espaço estivesse lendo uma página misteriosa escrita em caracteres desconhecidos.

«E assim se conservou durante horas, não o inquietando a violência do vento húmido que lhe açoutava as faces, os gritos roucos e angustiados de alguma ave que fugia à borrasca imi

« AnteriorContinuar »