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dade, com que aureolou as almas que povoam os seus romances e foram dedicadas companheiras das suas lucubrações.

No campo da Arte é que as suas crenças eram fundas, definidas e precisas.

Numa das Cartas para minha família, escreve Júlio Denis:

«¿Acabou pois a religião da Arte entre nós? «¿ Pois não é a Arte uma religião também ?» (1)

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Respondemos, como êle, pela afirmativa e acrescentamos: foi esta mesmo a sua verdadeira religião.

Não era só a literatura a sua maior paixão - que o prendia. A pintura, a que, por mais de uma vez, faz referências nos seus romances, e especialmente a música, eram Deusas do seu Templo. Citaremos uma passagem interessante da Morgadinha dos Canaviais:

«Henrique não resistiu a esboçar ràpidamente o gracioso grupo (a Morgadinha lendo as cartas às raparigas da aldeia) na carteira que tra

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 76.

zia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrêm de pura raça e dando à donzela, pelos trajos com que a desenhou, os ares de uma castelã rodeada dos seus vassalos.

«Não lhe bastou o natural do quadro, quis revestí-lo de um figurino de convenção. Perdôe-lhe a arte que julgou servir.»

Henrique é, como demonstraremos, a representação, no romance, de Júlio Denis. Esta passagem, porém, representa apenas uma aspiração. Em muitos dos seus manuscritos deixou o romancista alguns desenhos. Não era, positivamente, uma vocação! Não teria habilidade para tanto!

A música parece ser, depois da poesia e do romance, a arte preferida. Pressente-se em tôda a sua obra. Nas Pupilas, onde Júlio Denis nos aparece transfigurado em Daniel, canta, para afastar o aborrecimento que o invade, a ária de Genaro na Lucrécia:

«Di pescator ignobile

Esser figliuol credei.» (1)

Na Familia inglesa, descreve Júlio Denis

(1) Júlio Denis, Pupilas do sr. Reitor, ed, cit., pág. 136.

uma noite no Teatro de S. João com pormenores que mostram bem quanto estava ao corrente do movimento do teatro lírico do Pôrto.

Cantava-se a Lucia. Mr. Richard Whitestone não era assíduo freqüentador da ópera, mas

«Tendo já desesperado de ouvir no teatro do Pôrto música de compositores ingleses, como Haendel, Gray, Arnold, Bishop e outros, cujos nomes a cada momento citava com entusiasmo, resignava-se a afagar sòmente o seu acrisolado patriotismo com ir ao teatro quando se cantavam aquelas óperas cujos libretos eram extraídos de algumas das obras primas da literatura inglesa.

«O Otelo, o Macbeth, os Capuletos, as Prisões de Edimburgo, os Foscaris, o Marino Faliero e outras neste mesmo caso, lutavam vantajosamente com o seu muito amor pelo fogão e traziam a público aquela fisionomia, radiante de contentamento e expressiva de saúde, que o leitor já conhece.

«Preparava-se de ante mão, nessa tarde, relendo a obra que servia de assunto à ópera, e ia depois com vontade para o teatro.

«Não eram porém Rossini, Verdi, Bellini, Ricci e Donizetti os que o atraíam e enlevavam; era Shakespeare, era Byron, era Walter Scott, cujos vultos lhe parecia estar vendo no palco evocados, por sua vez, pelas mesmas persona

gens que o génio dêles tinha evocado outrora. -A música era o acessório. Os aplausos do público roubava-os Mr. Richard, por patriotismo, aos maestros, para os conferir àqueles seus famosos conterraneos.

«No número das tais óperas contaya-se Lucia de Lammermoor. Assunto escossês, tratado por pena escocesa, e das mais admiráveis em desenhar tipos simpáticos e imortais, não era para Mr. Richard resistir-lhe. Havia de ir por fôrça.» (1)

Entre os seus inéditos, encontrámos um manuscrito que nos mostra Júlio Denis sob um novo aspecto: o de informador teatral. Intitula-se: A respeito de Stradella... Principia as

sim:

«Em vésperas de gozarmos uma nova composição de Flotow, o autor da Marta, mimosa ópera que tanto nos deliciou o ano passado, pensei que faria uma fineza aos leitores e leitoras do Jornal do Porto contando-lhes singelamente o entrecho da ópera romântica de Friederice, que o maestro alemão escolheu para esta sua nova partitura. Vou por isso dizer-lhes

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(1) Júlio Denis, Uma Familia inglesa, ed. cit., pág. 199.

«A acção passa-se em 1600 em Veneza. Esta simples circunstância é suficiente para prevenir o público que não faltarão gôndolas, máscaras, serenatas, punhais e não sei se venenos, porque na soberba rainha do Adriático pelos modos não há festa que valha, onde não entrem êstes ingredientes.» (1)

(1) Frederico Fernando Adolfo de Flotow, compositor alemão (1812-1883), não é dos autores musicais do nosso tempo. Escreveu muitas óperas, sendo a mais notável a Marta, que percorreu todos os teatros da Europa, tendo tido grande sucesso em Paris, onde se estreou em 1858 e mais tarde em S. Carlos e no S. João, do Pôrto. No seu largo repertório figura uma ópera com um motivo português: O escravo de Camões, que foi representada em 1843. Não sabemos se chegou a ser cantada em Portugal.

Alexandro Stradella, a ópera que serviu de tema ao artigo de Júlio Denis, tem por base a lenda que se criou em tôrno dêste célebre cantor e compositor napolitano (1645-1678). Conta-se, a propósito da sua vida aventurosa, que, um dia, quando uns assassinos o esperavam à porta de S. João de Latrão para o matarem, a orquestra rompera dentro do templo, com as primeiras notas de uma das suas célebres oratórias. Comovidos, não tiveram coragem de assassinar quem tais encantos derramava nas suas almas, segundo refere o biógrafo donde extractamos esta nota. Bons assassinos, os dêsse tempo! Dois anos depois, porém, faltando-lhe a orquestra, sempre lhes caíu às mãos.

As suas composições chegaram até nós, sendo entre tôdas célebre a Aria de Chiesa.

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