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Depois segue a descrição do enrêdo da peça, que não ousamos transcrever, a-pesar da leveza e curiosos comentários que o esmaltam. O artigo parece não estar completo.

Esta predilecção pela música de Flotow, e particularmente pela ópera Marta, que, ao tempo, fazia as delicias dos freqüentadores dos líricos da Europa, manifesta-a ainda Júlio Denis num outro inédito, O Canto da Sereia, delicioso romancezinho que, em parte, transcreveremos. Prestar-nos há valiosos subsídios no seguimento deste trabalho.

De versos, preferia Júlio Denis os que se cantam aos que se recitam. Á música da palavra queria juntar a que é divinizada pelo canto. E assim é que muitas das suas composições métricas são escritas em versos de sete sílabas, os preferidos nos rimances e xácaras cantadas pelos menestréis portugueses.

Não podemos saber até onde ia a sua cultura musical; mas o que sabemos, pelos seus apontamentos, é que freqüentava, com uma certa assiduïdade, o teatro lírico de S. João. O que deixamos exposto é o bastante para apreciarmos mais esta facêta do seu complexo temperamento de artista.

Júlio Denis amava as artes em si. Na literatura prendia-o sobretudo a idea, embora não desprezàsse a forma.

Não o seduzia a crítica. Só uma ou outra

vez, e apenas em apontamentos íntimos, respondeu às que dirigiram à sua obra.

Tinha um círculo muito limitado de relações. Os autores e os homens célebres do seu tempo não o interessavam, excepção feita de Herculano e de Garrett.

Camilo e Ramalho Ortigão, por exemplo, que já marcavam no meio literário, não eram pessoas de sua simpatia. Em 10 de Fevereiro de 1869, escreve êle a Custódio Passos:

«Mas vamos ao caso: em meio da conversa anunciou-me êle (1), como uma grande nova, que o Camilo Castelo Branco estava também em Lisboa. Á vista da minha indiferença éle não pôde deixar de preguntar-me se eu não tinha relações com êle. Poucas, foi a minha resposta. Logo depois segunda notícia de polpa: o Ramalho Ortigão morava perto da casa para onde eu ia. A mesma indiferença da minha parte; a mesma pregunta da parte dêle, à qual eu respondi: Algumas. Que pensaria o homem consigo ? » (2)

Com Ramalho Ortigão trocou Júlio Denis

(1) Tomás de Carvalho, que lhe prestou serviços em Lisboa.

(2) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. I, pág. 212.

impressões em público, sob o pseudónimo de Diana de Aveleda no Jornal do Porto, de 25 de Fevereiro de 1863, a propósito de um folhetim que, com o título Coisas inocentes (1), escrevêra o autor das Farpas. Ramalho respondeu-lhe, tomando-o pelo sexo do pseudó

nimo:

«Não me abalanço eu» diz Ramalho- «a decidir até que ponto um homem pode conhecer outro homem, e muito menos, se é possível que um homem conheça uma mulher.» (2)

A discussão não prosseguiu. Não acreditamos que essas cartas determinassem qualquer sombra de azedume entre os dois escritores; de moldes e estilos tão diferentes. Estamos em crer que apenas o antagonismo das duas formas literárias os separava.

Contudo, há uma referência em uma outra carta a Custódio Passos (14 de Outubro de 1869) em que duvida da sinceridade com que Ramalho o tratava, o que dá bem a nota do seu feitio reservado e até um pouco desconfiado:

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. I, pág. 129.

(2) Idem, ibidem, vol. I, pág. 146. 3

«Vi o Ramalho Ortigão na Biblioteca da Academia. Correu para mim com os braços abertos e com uma expansão de me deixar sensibilizado. Achei-o adoentado; mais magro e sem côr...»

Mas tudo isto é pouco. No fundo, talvez fôsse apenas uma questão de antinomia sôbre processos diversos de fazer a mesma arte. Mas, em suma, mesmo entre individualidades dêste vulto, não se foge à regra dos oficiais do mesmo ofício...

Não o interessava Ramalho, como o não entusiasmava Camilo. A respeito dêste é ainda mais expressiva a seguinte passagem de uma das suas cartas a Passos:

«Ainda outro fenómeno quási do mesmo género. Ontem, descendo o Chiado, esbarrei cara a cara com não menor personagem do que Camilo Castelo Branco. Se fosse no Pôrto, saüdar-nos-iamos muito cerimoniosamente e passariamos. Aqui foi outra coisa. O amável romancista dirigiu-se-me com maneiras tão afáveis que dir-se-ia sentir um real prazer em

me encontrar.

«Queixou-se-me por miúdo dos seus males físicos que o tinham, obrigado também a vir a Lisboa; das suas apreensões a respeito duma suposta doença de espinha medular e alguns

fundamentos tem para a suposicão (1)—das. canseiras que lhe tinha dado a doença de um filho, obrigando-o isso a continuada vigilia; informou-se dos meus padecimentos, deu-me conselhos, sentiu do coração que a minha doença me não deixasse escrever, e terminou oferecendo-me à sua casa. Separámo-nos como grandes amigos, depois dum tête-à-tête de um quarto de hora.» (2)

Nestas palavras há um ázedume que mostra qualquer reserva contra Camilo. O feitio mordaz do brilhante escritor talvez se tivesse exteriorizado no Pôrto contra êle em crítica menos lisonjeira, em conversas de livraria. Nada conhecemos escrito que pudesse incompatibilizar, mesmo ao de leve, os dois grandes romancistas, a não ser que Júlio Denis não levasse a bem que Camilo Castelo Branco desse guarida, na Gazeta Literária do Porto, que dirigia, à crítica áspera e injusta de Andrade Ferreira, a que fizemos larga referência.

Júlio Denis publicou no Jornal Nacional, de 25 de Setembro de 1861, um artigo de crítica ao livro de Vieira de Castro sôbre Camilo

(1) Deveria querer referir-se ao tabes, que muitas vezes vem acompanhado de perda da visão.

(2) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 213. Carta de Fevereiro de 1869.

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