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Que diabo ha tão damnado
Que não tema as cutiladas
Dos fios seccos da espada
Do fero Miguel armado?

O conde riu e mandou-o soltar. Camões accrescentava:

Portanto, Senhor, proveja,
Pois me tee ao remo atado,
Que antes que seja embarcado
Eu desembargado seja. 1

Camões desejava, com effeito, embarcar na grande armada em que o vice-rei ia a Calecut lavrar pazes solemnes com o Çamorim. Era uma frota de mais de cento e quarenta navios, nos quaes oito ou dez galés, «a mais formosa cousa que os mouros nunca viram por aquella costa». Iam a bordo cerca de quatro mil homens, a fina flôr da fidalguia da India, «a mais limpa e lustrosa gente que nunca saíu de Goa». Desceram a costa n'um triumpho, dispensando-se de bombardear Cananor rebelde, e foram tomar terra em Tiracolle, onde o Çamorim estava. Ahi tiveram logar as audiencias solemnes, e, ratificadas as pazes, seguiu o vice-rei para Cochim, onde a chusma da esquadra, nos ocios do desembarque, se entretinha em rixas e duellos, dando largas ás paixões no desenfreamento da vida oriental. Morreram assim em desafios e brigas mais de cincoenta homens. 2 A armada voltou a Goa, sendo incerto que Camões tomasse parte na expedição.

1 Redond.. 2 A Eleg. 20 allude á morte de D. Tello de Menezes. Couto, Dec. vII, x, 9.

2

Decorria agora para o poeta uma vida de bonança e prazer sob a egide do governo amigo do conde de Redondo: por isso mesmo os annos que vão de 1562 a 70 são os mais estereis. No socego da sua alma não brotavam emanações, porque só no mar encapellado, quando as cordas do vento o açoutam, as aguas se toucam de corôas de espuma, desfazendo-se em lagrimas alvacentas sobre o dorso negro das vagas. Na paz da bonança, o mar é mudo e o céo immovel; a natureza dormita, e toda a terra estilla um vago bocejo de tedio e saudade.

Camões levava em Goa, com o valimento e intimidade do vice-rei, uma vida facil, permeada de regalos e festins. Tinha uma roda de amigos, antigos companheiros de armas e aventuras: D. Vasco de Athayde; D. Francisco de Almeida; Heitor da Silveira, que viria expirar nos braços do poeta, a bordo da Santa Clara, em Cascaes; João Lopes Leitão, que morreu afogado na ria de Chaul; Francisco de Mello, dos Mellos de Serpa, tronco da casa de Ficalho; commensaes todos na famosa ceia descripta pelos biographos do poeta. Faltava ahi Alvaro da Silveira. O irmão do jesuita Gonçalo, martyrisado na missão de Monomotapa (1561), morrêra degolado pelos turcos na batalha de Baharem (1559), que já contámos. Mas Diogo do Couto, «matalote e amigo» do poeta, andava tambem em Goa com o velho Garcia da Horta, naturalista celebre, cujos Colloquios tinham saído á luz em 1563, recommendados ao vice-rei por uma ode de Camões. 1

1 Ode 8.-V. o bello trabalho do snr. conde de Ficalho, Garcia da Orta e o seu tempo; Lisboa, 1886.

O vice-rei D. Francisco Coutinho morria, porém, em 1564 (fevereiro), e succedia-lhe interinamente, em segunda successão, João de Mendonça, que n'esse mesmo anno entregou o governo a D. Antão de Noronha, chegado do reino. D. Antão militára n'outros tempos com o poeta em Ceuta, e trazia comsigo para a capitania de Malaca a D. Diogo de Menezes, o que depois seria degolado em Cascaes por se pronunciar pelo Prior do Crato contra os hespanhoes. Estes recem-vindos eram amigos do poeta, da sua geração, e Camões embarcou com o segundo para Malaca, segundo resa a tradição que alguns negam, transferindo essa viagem para os tempos anteriores da estada em Macau.

Os annos que teria andado pelo Extremo-Oriente (1564-66) visitando as Molucas, porventura o Japão, são um periodo de silencio. A sua musa emmudece. O mundo já não tem segredos que o impressionem. Viu e viveu plenamente a vida desde os dias genesiacos da gruta de Macau. Como o Creador, feito o universo, descança. Como a chrysalida, deposta a semente, morre. A sua missão estava cumprida. O sol do seu pensamento subira até ao meridiano para attingir a plenitude da illuminação: agora vinha descaíndo mansamente sobre o occaso, n'uma tarde suave de tristeza e desengano.

Volta a Goa, no principio de 1567, e o vice-rei, seu amigo, remunera-o com a sobrevivencia da feitoria de Chaul, a que andavam annexos os cargos de alcaide-mór, provedor dos defuntos e vedor das obras. A graça, porém, era apenas virtual, porque a vaga não se déra ainda, nem chegou a dar-se at é o poeta voltar da India.

Esse dia approximava-se: o tedio de viver assaltava-o com insistencia progressiva:

Oh como se me alonga de anno em anno
A peregrinação cançada minha ?

Como se encurta e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Mingoando a edade vai, crescendo o damno;
Perdeo-se-me um remedio, que inda tinha:
Se por experiencia se adivinha,

Qualquer grande esperança he grande engano.
Corro apoz este bem que não se alcança;
No meio do caminho me fallece;
Mil vezes caio e perco a confiança.

Quando elle foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda apparece,
Da vista se me perde e da

esperança.

1

N'este manso descaír da tarde, as sombras accumulam se; a saudade da patria confunde-se nebulosamente com a saudade da amante morta, com a saudade das illusões desfolhadas uma a uma e perdidas nos redomoinhos de pó que o vento vae levando para além, cada vez mais para longe, até se perderem nos horisontes negros da noute que vem subindo:

Bem sei que heide morrer n'esta saudade
Em que meu esperar he todo vento... 2

Em tal estado veio achal-o o convite de Pedro Barreto para que o acompanhasse a Moçambique, offerecendo-se a pagar-lhe a passagem. Camões foi com o capitão: approximava-se da patria...

Já chegado era o fim de despedir-me... 3

Foi, e durante os mezes que ahi se demorou (fins de 1567 a novembro de 1569) empregou-se em pre

1 Sonn. 48.

2 Sonn. 336.- 3 Sonn. 139.

--

parar, em limar, em dispôr convenientemente El tesoro del Luso, como Cervantes chama ao poema offerecido por Camões a el-rei D. Sebastião. A

Maravilha fatal da nossa edade

tomára entretanto (1568) as redeas do governo, e Camões via surgir no horisonte essa figura juvenil do rei, como um clarão do poente illuminando o ultimo descaír da sua vida, da vida da sua patria. Depondo a penna, terminado o canto, exclamava:

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto; mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida :

O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a patria, não, que está metida
No gosto da cubiça e na rudeza

Dhua austera, apagada e vil tristeza. 1

Afogava-o um soluço de angustia. O pessimismo portuguez assaltava-o; mas, com esta contradicção tão nossa de caracter, voltava logo a esperança e a necessidade de acção, apoiada n'uma consciencia firme da nobreza nacional:

E não sey porque influxo de destino
Não tem hum ledo orgulho e geral gosto,
Que os animos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rey, que por divino
Conselho estais no regio solio posto,
Olhay que sois (e vede as outras gentes)
Senhor so de vassallos excellentes ! 2

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