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como Camões, ou, a cavallo no jumento do bomsenso, vae com Rabelais, com Cervantes, ou com Gil Vicente, despedindo os seus remoques sem fel e os seus conselhos amigos. Ri, e d'essa fórma vinga-se. Os contrastes da vida clerical são o primeiro thema da satyra, e entre esses contrastes os mais grutescos são os que o celibato provoca. Um clerigo ralha com o filho, que lhe responde, desculpando-se:

Peores são os de Frei Mendo

E os do beneficiado

Que vão tomar o bocado

Que seu pae está comendo. 1

E' natural. O celibato contra naturam, dura imposição lançada á milicia ecclesiastica, torna-se a origem dos amores sacrilegos a que a sociedade, solta á lei do naturalismo, não corresponde, porém, com a reprovação de outros tempos. Rubena, na comedia do seu nome, era filha de um abbade que muito apreciaba:

Bonita, hermosa á gran maravilla,
Um clerigo mozo que era su criado
Enamoro-se d'aquella doncella ;
La conversacion acabó con ella
Lo que no dubiera haber comenzado.

Tal é a plebe da clerezia; a sua nobreza, a que povoa as sés, padece dos mesmos vicios. Rubena tem dos seus amores um filho, e a feiticeira que lhe assiste ao parto, manda aos seus diabos por um berço para o recem-nascido:

1 Gil Vicente, auto do Clerigo da Beira.

CAROTO Draguinho, tu a San Vicente de fóra.

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Camões escreve tambem n'uma das suas comedias: «Meu pae era clerigo, e os clerigos sempre chamam aos filhos sobrinhos; e d'aqui me ficou a mi ser filho de meu tio». 1

No clero regular os vicios são ainda mais graves; nem admira, porque as obrigações da regra crescem na razão do idealismo da instituição, que já se não fortalecia com os estados de arrebatamento mental transactos. A relaxação do mysticismo, eisahi o que no norte da Europa deu a Reforma, e no Meio-dia a Sociedade de Jesus, milicia nova destinada a substituir todos os antigos batalhões monasticos, successivamente creados para combater a tibieza da fé, e que agora se mostravam tão indisciplinados como as levas de reinoes que as naus da India cada anno levavam para o Oriente. Este

He cura no Lumiar
Sochante da Mealhada
Arcypreste de canada
Bebe sem resfolegar. 2

Outros são vinte e sette que veem de furtar melões». 3 Na Feira o diabo vende entre outras

cousas:

ra.

1 Elrei Seleuco. 2 Gil Vicente, Exortação da Guer-3 Mofina Mendes.

Naipes com que os sacerdotes
Arreneguem cada dia

E joguem té os pellotes;

e a lua vê clerigos e frades que «ja não teem ao céo respeito».

Mingua-lhes a santidade
E cresce-lhes o proveito.

Teem todos os vicios vulgares. Como não ha de ser assim, se agora a regra é viver, é gosar, atirando para longe com os cilicios, e soltando as estamenhas ao vento nos passos descompostos da sarabanda pagan que succede á dura vida de outros tempos? E depois são tantos, tantos! O numero dá confiança, dissipa escrupulos:

Somos mais frades que a terra
Sem conto na christandade. 1

E' uma hyperbole do poeta? Não é. Do arrolamento de 1552 consta que Lisboa, contando áquella data 83:600 habitantes, incluia 2:600 frades e clerigos e dez mil escravos. Escravos e frades foram crescendo sempre, até ao meiado do seculo XVIII, e produzindo aquella sociedade que descambou no «reino da estupidez» pelo caminho da inercia beata.

Na Barca da Gloria iam os grandes para o céo presos ás chagas de Christo; na Barca do Inferno vão os pequenos, um onzeneiro, um sapateiro, um corregedor: só se salva o parvo e o cavalleiro d'Africa, a quem o Anjo diz:

1 Fragoa d'amor.

Quem morre em tal batalha
Merece paz eternal.

A guerra de Africa é o symbolo das saudades dos tempos antigos, dourados sempre pela imaginação, refugio para onde os portuguezes do tempo voltavam os olhos maguados com o espectaculo do drama oriental. E a apotheose do parvo é a chicotada lançada pela satyra sobre o corpo de uma sociedade que desce toda em turbilhão, uns envoltos em crimes, outros em desgraças, até ás profundezas dos infernos.

O onzeneiro é o que tem

Vinte mil cruzados

Ganhados d'onzenas taes

Com esses pobres misteriaes
Que estavam necessitados. 1

A agiotagem, crime do judeu, commum a toda a gente n'esta época de aventuras mercantis, é a arte de depennar «com o passo meudo e apressado» o lavrador e misterial, o artifice, ingenuos que ainda entendem ser necessario trabalhar para ganhando a vida. A agiotagem vae de braço dado com a simonia do corregedor, a quem o diabo barqueiro pergunta:

E as peitas dos judeus

Que vossa mulher levava?

ir

A justiça não se vende só por dinheiro: vende-se por beijos. Este mesmo corregedor, que agora vae

1 Floresta d'enganos.

a caminho do inferno, dizia a uma pretendente

moça e bella:

Yo no quiero

De vos plata ni dinero,

Mas privar con vos por cierto
En logar mucho secreto.
Por deciros cuanto os quiero

Yo daré, juro á Dios,

La sentencia en vueso hecho. 1

O satyro succede ao agiota; e o rei confessa tristemente que

Por cierto el mayor mal

Y que en mi reyno mus importa
Es la justicia estar muerta.

Quando a justiça expira, a fortuna abala. Na Fragoa d'amor, cujas escorias são as miserias da sociedade portugueza, a Justiça vem dizendo:

Ando muito corcovada,

A vara tenho torcida
E a balança quebrada;

e das caldeações que os ferreiros fazem para a purificar, sáem como escoria as peitas: um par de gallinhas, um par de perdizes, duas grandes bolsas com dinheiro. Faltam os beijos do corregedor, faceis de dar por mulheres como a Isabel de Quem tem farellos, como Ignez Pereira, a quem o escudeiro dispensa o castigo merecido:

1 Floresta d'enganos.

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