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de perolas e diamantes. Os estribos eram de prata dourada, as redeas tinham campainhas de ouro; e á frente do cavallo trotava o mandil negro com o seu bastão de prata para abrir caminho; atraz d'elle o faraz sacudindo as moscas, e o boiá ao lado com o sombreiro de damasco franjado de ouro. A procissão ia entrar na Sé: o mandil afastava o povo atarefado. Já o couce do cortejo passava defronte da Inquisição, outr'ora harem de Adil-shah, a que os indigenas chamavam orllem gor, «a casa grande» consagrada antes ao amor, e hoje convertida em baluarte da fé. Já a procissão entrava na Sé, onde se ia cantar o Te-Deum, e os fidalgos esporeavam os cavallos com pressa, e as senhoras desciam nos seus palanquins envolvidas mysteriosamente em sedas, cercadas de pagens e de escravos que trotavam miudo e apressado.

Caía a tarde já, quando o hymno triumphal se entoava na Sé. Cá fóra o sol descia tambem n'uma apotheose. O calor pesava como chumbo, o céo via se afogueado, o ar tremia em chammas. Nos horisontes do poente ardiam vulcões, e o firmamento, listrado de azul e de negro, de branco e de rubro, era com effeito o theatro de combates gigantes. Sobre os montes, a serpente Ahi soltava outra vez os seus rolos de nuvens, e Indra enfeixava na dextra os seus raios. Ao longe ouvia-se tambem Vayan bramir nos bancos da Aguada... Logo, n'um clarão ultimo, incendiando o mar, Vishnu afundouse n'elle, e começou a batalha dos ventos desenfreados e dos raios dardejando sobre o ventre de Ahi, que se abria em rios de chuva caíndo sobre o chão secco de pó e ardente como ferro em braza. Um cheiro acre evolvia-se das terras.

Esse cheiro eram os «fumos da India » envene

nadores, de que fallava Albuquerque. A sua imagem apparecia sobre o mar amortalhada n'um esquife, com a cruz de Santiago ao peito, a espada á cinta, e a longa barba fluctuando ao vento, os labios tremendo no soluço em que, agonisante, dizia: «Mal com os homens por amor d'elrey, mal com elrey por amor dos homens, melhor é acabar.... E acabou, n'esse descanço da morte que é a definitiva redempção, expirando com elle, tambem n'um soluço, a força portugueza.

*

O sol da India, porém, não fazia mais do que precipitar a ebullição tumultuosa de motivos que se agitavam na alma portugueza, acclamando-lhe ost proprios desvairamentos com aquella sancção que a gloria confere aos factos consummados.

Impellido na Edade-média pela vontade clara da independencia, Portugal deixou-se inspirar pela guerra santa contra os mouros; e quando a sua ambição se cumpriu, encontrou se de pé sobre uma praia, com o mar deante de si, sussurrando tentações. Embarcou com a idéa de proseguir no mar a sua empreza terrestre: anniquilar os mouros, augmentando a sua força e a sua riqueza. Como?

Tudo era novidade. Pela primeira vez, nos tempos modernos, os povos do occidente europeu, descendentes da civilisação romana, se encontravam perante a immensidade de regiões cuja propriedade não reconheciam a seus antigos donos. O direito de conquista em que se baseava a existencia da metropole, estendia-se a um mundo. Os pactos internacionaes dos povos europeus não se concebiam sequer com gentios de outra côr, e não-christãos. As

sociedades ultramarinas estavam para os portuguezes, como seculos antes todo o mundo barbaro para o grego ou para o romano.

N'estas condições, e com os antecedentes que por toda a parte caracterisavam as expedições maritimas, indecisas entre o commercio, a descoberta e a pirataria, associando-se os reis e os armadores, como se vê na nossa legislação fernandina, para a rapina maritima: n'estas condições, a conquista da India e o avassallamento dos seus mares não podiam ser outra cousa senão o que eram: um saque systematico e tão desordenado, que desde todo o principio offendia os bons espiritos.

Com as proporções que as emprezas ultramarinas tomaram para Portugal, a nação inteira se achou absorvida por ellas, e os sentimentos adequados ao novo estado substituiram as idéas de ordem que principiavam a assentar, concluido o periodo tormentoso da conquista. E, finalmente, com o clima extenuante do Oriente, com a sua riqueza desmoralisadora, a alma portugueza, arrebatada por um desejo heroico, tombava victima de um envenena

mento.

Triumphava-se em Goa, triumphára se em Roma na embaixada que D. Manoel enviou ao Papa; mas essa propria apotheose carthagineza de Roma denunciava o conflicto, e a coexistencia da cobiça e do imperio, no espirito dos nossos homens da Renascença. São elles os primeiros que o accusam quando repellem a idéa de os tomarem por piratas, como o Gama quando diz:

Não somos roubadores, que passando
Pelas fracas cidades descuidadas,
A ferro e a fogo as gentes vão matando
Por roubar-lhe as fazendas cubiçadas;

Mas da soberba Europa navegando,
Himos buscando as terras apartadas
Da India grande e rica, por mandado
De hum Rei que temos, alto e sublimado. 1

Este é o desejo; mas o facto é outro, sem que isso envolva demerito para nós. Todos os povos cultos, antes e depois de nós, procederam da mesma fórma; mas o nosso mal foi não sabermos consagrar como imperio o direito de primeiro occupante, como queria Albuquerque e como o fez ancorando os portuguezes em Goa e casando-os com o indigena.

Não tivemos, porém, intelligencia para comprehender, nem força para realisar o plano de Albuquerque; e por isso o nosso dominio anarchico matou-nos a nós, e perdemos o Oriente assim que nos foi disputado por concorrentes. Tinhamos, porém, á falta de um pensamento claro de governo, uma illuminação religiosa ardente, e essa propria dispo sição de animo accendia uma ferocidade a que a cobiça por seu lado prestava lenha.

Ha n'um livro de Diogo de Couto uma palavra que revela o estado de exaltação feroz dos espiritos. Ém Cananor, cercada pelos mouros, os portuguezes eram muitos e o logar estreito: não podiam todos combater a um tempo... «e pelas siteiras desparavam sua arcabuzaria, e como davam no cardume dos Mouros, que estavam apinhoados ao redor dos muros, não se perdia tiro, antes houve muitos que com os pilouros e munições derrubaram dois e tres. E como os nossos soldados eram muitos, e não havia siteiras para todos, estavam outros detrás dos que as tinham occupadas, e tanto que desparavam, que haviam de tornar a carregar, sem quererem

1 C. II, 80.

largar os logares, lhes pediam pelo amor de Deus que emquanto carregavam lhes deixassem matar hum Mouro». A

E' tão ingenuamente feroz, que arripia. Essas creanças terriveis satisfaziam-se matando. Não matavam para se defender, não matavam para vencer: matavam por deleite e satisfação infantil. Este estado mental, que nos simples era ingenuo, tomava um caracter tragico nos espiritos que sentiam epicamente a pulsação do genio portuguez. O proprio Camões que condemna, embora brandamente, a crueldade de Albuquerque, tem estas palavras de exhortação aos Menezes:

Dai nova causa á côr do Arabo Estreito
Assi que o Roxo mar, d'aqui em diante
O seja só com sangue da Turquia. 2

Pelo amor de Deus! deixae-me matar, não um mouro, mas um cento, um milhar, um milhão d'elles, para que o mar Vermelho o seja com sangue de infieis. Isto bastaria para mostrar como seriam as guerras, se não conhecessemos a historia das atrocidades de Vasco da Gama na sua segunda viagem, e de Affonso de Albuquerque a caminho de Ormuz, pela costa da Arabia. E é d'esta ferocidade que nasce o pesado sentimento de Terror, verdadeira Moira lusitana que paira sobre a tragedia epica dos Lusiadas.

Mas não era sómente a fé que accendia a ferocidade na alma dos portuguezes: mais ou menos ingenuamente, mais ou menos conscientemente, a cobiça enroscava-se á fé, como trepadeira a um

1 Vida de D. Paulo de Lima (1765), p. 40-1.—2 Sonn. vi.

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