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tronco de arvore, para açular o ardor religioso. E' sabido que os Lusiadas são a epopeia do commercio; e já em Africa, já desde o dia de Ceuta, os trabalhos dos novos phenicios levavam em mira trazer a Lisboa os redditos do commercio oriental encaminhado para Veneza. A empreza das Indias foi em grande, e levada a cabo por um povo inteiro, uma expedição analoga a tantas outras que as cidades do norte europeu mandaram pelos mares, da mesma fórma e com eguaes intuitos aos das frotas que primeiro saíam de Lagos por mandado do infante D. Henrique. Aconteceu que, favorecidos nós pela sorte magnifica do exito da viagem de Vasco da Gama, essas expedições se tornaram officiaes, chegando a concentrar n'ellas o destino inteiro da nação.

Mantiveram, porém, o mesmo caracter; pois se Albuquerque traçou o alicerce de um imperio portuguez no Oriente, os seus successores não souberam seguir o risco; e Portugal, cuja acção eminente de povo colonisador se affirmára nas ilhas atlanticas e no Brazil, não saíu jámais na India d'essa politica indefinida de pirataria e commercio monopolisado, causa primaria do mallogro da empreza. A conquista ficou sempre uma exploração; os conquistadores accumulavam a condição de agentes mercantis. D. Francisco de Almeida, que abertamente propunha o plano de nunca se saír do mar, limitando-nos a imperar n'elle para o ceifar, conservando apenas os pontos maritimos necessarios á sustentação das armadas e á cobrança das páreas: D. Francisco de Almeida escrevia a D. Manoel, como um caixeiro a seu patrão:

«E assi V. A. me manda que a Pimenta vá limpa e secca: sei que se contentou com a que levou Tris

tão da Cunha e muito mais da que agora vae: praserá N. S. que sempre assi será, e porque V. A. me mandou que o peso se por fizesse nossas balanças e pesos, eu o tenho acabado muito com vontade de elrei de Cochim e dos mercadores com bons exames; e achamos que pesa o Baar de Cochim tres quintaes e trinta arrateis do peso velho e nos custa o quintal mil e quinhentos reis e meio: e dá-se tal aviamento que com duas balanças té vespora pesaram mil quintaes... Não parece estarmos lendo, se retirarmos o N. S. e o V. A., a correspondencia de um agente de Bombaim para o principe da city de Londres? «O aljofar e as perolas que me manda que lhe envie, não os posso haver, que os ha em Ceylão e Carle que são as fontes d'ellas : compral-as-hia com o meu sangue e com o meu dinheiro, que o tenho porque vós m'o daes... As escravas que diz que lhe mande tomam-se depressa, que as gentias d'esta terra são pretas e mancebas do mundo, como chegam a dez annos». E no fim o governador lamenta-se do pouco caso que no reino se faz das suas queixas: «...dizem cá que V. A. moteja lá com quem cá achamos com os furtos nas mãos, que não é bom exemplo para os que pelejam e não furtam». 1 Esses eram poucos; não porque, como homens, valessemos mais nem menos: mas sim porque a conquista era uma rapina organisada em parceria da Corôa com os soldados. Regulamentos fixavam as partes correspondentes das prezas das naus de mouros saqueadas á bocca do Estreito na viagem de Mekka.

A conjuncção d'estes dous motivos, a exaltação

1 Carta a D. Manoel, nos Ann. das Sc. e Lettr., da Acad. de Lisboa.

religiosa e a cobiça desenfreada, produzia a furia que abertamente se expandia no seio d'esse naturalismo individualista, renascença tambem da alma moral antiga, e que, sendo commum a toda a Europa, ainda mais energicamente podia affirmar-se na anarchia da vida colonial. Além d'isso, a acção dos climas irritantes concorria tambem para dar ás tragedias da India um caracter epico e ao mesmo tempo orgiaco. O animal-homem, com os seus instinctos excitados, para bem e para mal, bracejava á solta. A paixão feminina, que está no amago da alma: o amor que na côrte provocava aventuras hypocritas, na India era caso para aventuras do genero que se via frequentemente na Italia. D. Paulo de Lima fazia a côrte á mulher de um homem rico de Goa. Conquistára-a, tinha frequentes reuniões com ella em sua casa. Uma vez, de noute, quando os amantes gosavam as delicias do seu crime, o marido entra. D. Paulo refugia-se n'um quarto, no topo da escada; o marido arma os criados. Vão com lanças, escadas arriba, ao assalto, e com machados derribam a porta. D. Paulo, no vão, de espada e rodella em punho, defende-se, combate, depois investe com os criados, passa sobre elles e foge. A esposa lança-se de uma janella á rua, onde o marido a acaba a golpes. D. Paulo homizia-se por uns mezes, logo volta a Goa, entra em serviço, é um heroe: a sua biographia entretem a penna de Diogo de Couto.

A vida é, pois, uma desordem: nos pensamentos fortes e nos instinctos mesquinhos. Como desordem, ten os contrastes agudos de heroismo e de abjecção, de bravura e chatinagem, de grandeza e mesquinhez. Camões escrevia de Goa: «Da terra vos sei dizer que é mãe de villões ruins e madrasta de

homens honrados. Porque os que cá se lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sobre a agoa como bexigas». O seu olhar amargurado via as sombras ao pé, vendo ao longe, nas illuminações da phantasia, a verdade do patriotismo ardente, do optimismo azul, com aquella dupla idéa contradictoria, tão commum nos poetas, e que só a philosophia reune e explica n'um pensamento synthetico. Cheio das saudades da patria, Camões, acceso n'essa fé idealista que a elle e a Portugal nos levanta da funda orgia em que ambos os povos peninsulares nos afogámos: Camões, affirmando a desordem da India, nega que seja vencer verdadeiro esse dominio de facto:

Mas na India cubiça e ambição,
Que claramente poem aberto o rosto
Contra Deos e Justiça, te farão
Vituperio nenhum, mas so desgosto.
Quem faz injuria vil e semrezão
Com forças e poder, em que está posto,
Não vence; que a vitoria verdadeira
He saber ter justiça nua e inteira. 2

E n'um dos seus mais vivos sonetos retrata assim a India, com os olhos arrasados de agua em saudades de Sião:

Cá n'esta Babylonia donde mana
Materia a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não tee valia;
Que a mãe, que manda mais tudo profana ;
Cá donde o mal se affina o bem se dana,
E pode mais que a honra a tyrannia;
Cá donde a errada e cega Monarchia
Cuida que um nome vão a Deos engana;

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Cá n'este labyrintho onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
A's portas da Cobiça e da Vileza;

Cá n'este escuro caos de confusão
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião! 1

Camões, portanto, no cortejo triumphal do nosso imperio, que canta, é ao mesmo tempo o escravo dos tempos romanos repetindo ao ouvido do general ovante o fatidico: «Memento!»

Agora só nos falta folhear mais uma vez o Gil Vicente, para vêr que influencia a India tem na metropole, uma vez que estudamos já a acção dos elementos europeus sobre o drama oriental. Essa influencia é funesta. A India é um vampiro que sorve todo o sangue portuguez. Os homens partem: ficam as mulheres sósinhas e que vida!

Quantas artes, quantas manhas
Que sabe fazer minha ama!
Hum na rua, outro na cama! 2

E' o que a Moça conta. Um dia o marido volta: a esposa observa-lhe:

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