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CAPITULO QUARTO

A Renascença

I

De todas as manifestações que determinou no Occidente europeu a conquista do Oriente pelos turcos, nenhuma foi maior, nem mais absorvente e commovedora, do que a crise religiosa. Despedaçado o nimbo de pessimismo ingenuo que durante seculos envolvêra o pensamento moderno; restauradas com amor as idéas e as creações artisticas da Antiguidade: todo o Meio-dia europeu como que acordou de um sonho, e com a vaga consciencia do tempo perdido em supplicios, lançou-se de braços abertos no optimismo da vida. O proprio papado se recordava dos tempos antigos em que a egreja triumphante de Constantino acclamava a grandeza do imperio; e pela mão de Leão x, com um desdem classico, encolhia os hombros perante o sussurro que, além do Rheno, faziam as prégações de Luthero, «invejas fradescas» !

Com um forte instincto da harmonia, revelado principalmente pela esthetica, os homens reconheciam o caminho errado em que tinham seguido, e, parando, sem repudiarem Christo, queriam abraçal-o a Platão, abraçando Orpheu e Moysés n'uma synthese que entreviam superior ás allucinações do espirito mystico e á seducção da natureza inconsciente. Não seria possivel achar no proprio coração da Terra essa corôa gloriosa de amor, cujos espinhos tanto dilaceraram a cabeça humana?

Ficino, Pico de Mirandola, Policiano, Lourenço de Medicis, e toda a Italia pensante, crêem que sim; e por isso, n'aquella ancia palpitante de saber que caracterisa o tempo, manuseiam com a mesma fé as Sybillas e os Prophetas, commentam S. Paulo com Empedocles, espiritualisam o paganismo, sensualisam o christianismo mystico, e das imagens hieraticas da iconographia anterior, estatuetas ajoelhadas com as mãos supplices, levantando do seio dos seus nichos para o céo as cabeças em gestos de agonia piedosa: trypticos dos altares em que, dentro de aureolas de ouro, virgens languidas, anemicas de devoção, cantam o seu martyrio: d'essas figuras mysticas em que se retratava o pensamento humano, extráem a estatuaria triumphante de Miguel Angelo e a pintura naturalista de Raphael e sobretudo de Leonardo.

Este néo-paganismo offendia a alma mystica das gentes do norte sombrio, onde as reminiscencias da Antiguidade não podiam acordar; pois só com os tempos modernos tinham entrado na civilisação quando emergiram dos seus bosques franjados de abetos, despegando-se como avalanches sobre a Europa cis-rhenana, conquistando-a e destruindo-a. Os impulsos barbaros de tempos, já distantes muitos

seculos, tinham-se amaciado; mas não murchára ainda, nem murchou até hoje, aquella açucena de candura mystica, nervosa nas petalas, ingenua e submissa no porte, curvando-se meigamente ao menor sopro da consciencia, resistindo intemerata a todos os vendavaes do mundo. Essa força de resistencia á auctoridade exterior encontrava-a a Allemanha no poder invencivel de submissão á auctoridade mystica. A liberdade religiosa que proclamava era o imperio absoluto da predestinação e da graça divina, pólo opposto da liberdade de pensamento que, beijando o pé do Papa, o Meio dia, porém, proclamava com enthusiasmo.

A Allemanha protestou, abolindo a auctoridade visivel e real, tornando absoluto o imperio da Biblia, a cujos textos allegoricos e moraes cada qual, porém, dava a interpretação conforme ao seu temperamento espiritual; protestou, abolindo na sua essencia a Egreja como instituição, e soltando as crenças para o dominio vago das cogitações individuaes: campo em que gradualmente, afrouxada a disciplina, a religião se tornaria, como com o tempo veio a tornar-se, um indeterminado espiritualismo religioso.

O Meio-dia, açulado pela guerra, desviou-se do caminho em que seguia e consummou a sua reforma de Trento, em opposição á de Augsburgo. Transformou a Egreja, de uma instituição, n'uma. milicia; fez do Papa, que era um presidente, um general; pôz a disciplina ahi onde até então havia apenas uma regra. O principio de auctoridade positiva que os protestantes despedaçavam, avigorou-o ao ponto de o tornar granitico; e a obediencia que Luthero transferira para as regiões intimas da consciencia moral, tornou-se o proprio nervo

da religião restaurada por Ignacio de Loyola. O genio hespanhol, subtil e duro, descobrindo n'um profundo relance a verdade do sentimento de povos estonteados pelo imperialismo, levantou ao Papa um throno de Cesar.

Separada nos termos divergentes de uma das antinomias essenciaes do pensamento, a Europa debateu-se quasi meio seculo n'um tremor sangrento de guerras. Impellidos pela crise a tirar as derradeiras conclusões, uns foram até ao delirio do anabaptismo, outros até ao ponto de converterem ́a Egreja, filha da piedade racionalista dos seus doutores, n'um lamismo similhante aos do extremo Oriente. O norte, obedecendo á idéa da liberdade e da graça que é a justiça transcendente, chegava, com a sinceridade, á anarchia no pensamento e no imperio; o sul, dominado pelas idéas de ordem e de auctoridade, transformava-as á força de engenho na casuistica, essa politica do espirito, e no machiavelismo que é a perversão da arte de go

vernar.

Tal é a atmosphera religiosa em que florescem os Lusiadas. Genuinamente meridional, o genio de Camões repelle o protestantismo germanico. Imperialista no estado, apresenta-nos na religião o mais bello documento d'esse idealismo espiritualista que, conciliando a liberdade e a ordem, teria porventura feito adeantar seculos á evolução mental da Europa, se a reforma protestante não tivesse precipitado a reacção auctoritaria nos povos latinos.

O Deus de Camões é uma pura divindade platoniana feita de idéas, embora mantenha o caracter voluntarioso do mosaismo. A sua vontade é o proprio querer das cousas; e acima de Deus está, como na Antiguidade, o

fado eterno,

Cuja alta ley nam pode ser quebrada. 1

E' verdade que, n'este ponto, o poeta refere-se a Jupiter; mas veremos, no decurso do nosso estudo, que das duas faces do deus christão, a jehovica e a hellenica, esta ultima oblitera sempre a primeira no espirito de Camões.

O terror de Deus na Edade-média proviera da idéa do Juizo-final, pesadello dos espiritos que vem formular-se já anachronicamente na famosa obra de Miguel Angelo, e que juntava desesperadoramente a idéa da responsabilidade ao dogma fundamental do Peccado, alicerce do pessimismo christão. Em Camões, o pensamento é outro; o mytho do Peccado-Original tem uma traducção optimista e pagan; as palavras que a Biblia põe na bocca do demonio eritis sicut dii, são a definição do poeta catholico:

Desce do Céo immenso Deos benino
Para encarnar na Virgem soberana.
Porque desce o divino a cousa humana?
Para subir o humano a ser divino.

Pois como vem tão pobre e tão menino,
Rendendo-se ao poder da mão tyrana?
Porque vem receber morte inhumana
Para pagar de Adão o desatino.

He possivel que os dois o fructo comem
Que de quem lhes deo tanto foi vedado?
Si: porque o proprio ser de deoses tomem.
E por esta rasão foi humanado?
Si: porque foi com causa decretado,

Se quiz o homem ser Deos, que Deos fosse homem.

Divinisado, pois, o homem, confundidas as natu

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