rezas divina e humana, pela exaltação do homem ao céo, pela descida de Deus á terra, céo e terra são a mesma cousa, homens e deuses a mesma especie, o Universo um verdadeiro Olympo, a existencia uma glorificação, a natureza um hymno de piedade optimista. Tudo se transfigurou com o acordar do dia da Renascença: o mundo canta n'uma alleluia immensa, e na face humana as lagrimas que rolavam uma a uma, dolorosamente, dos olhos descaídos na escuridão da penitencia, seccam agora com o sorriso dos labios enygmaticos da Joconda. Esse enygma é o pensamento creador, a idéa platonica, origem do Universo, infinito seio do in consciente: Olha aquelle Deos alto e increado Camões conhece as velhas philosophias physicas ou materialistas dos gregos; sabe a doutrina de Thales de Mileto e a de Epicuro; crê na creação biblica extraída do Nada pela vontade mosaica: cousa alguma d'essas quadra, porém, a um latino da Renascença, discipulo de Platão, o que aprendeu com Xenophanes de Colophonia. O mundo é um pensamento; a vontade, encarnando em Deus, fel-o um acto. A creação está na passagem 1 Eleg. 11. do não-ser para o ser; mas entre o não-ser e o nada, ha um abysmo. O não-ser é o cahos confuso a que Camões chamava pensamento do mundo, e que a philosophia denomina hoje Inconsciente. O mundo inferior que habitamos, dissera Platão na sua Republica, é a emanação alterada, mas similhante, do mundo superior das idéas e das essencias que não são apenas concepções ou reminiscencias do espirito, mas sim typos brilhantes, cujos exemplares degenerados constituem o nosso mundo. Para além das idéas está o uno: bondade, virtude, belleza, que não é nem uma idéa, nem uma essencia; mas que, superior a idéas e essencias, e tendo-as creado a todas, é a razão ultima de tudo quanto existe. D'esta mythologia transcendente, penetrada pelo christianismo, se formava a alma mystica de Camões. O seu Christo é apollineo: O teu rosto de cuja formosura Se veste o ceo e o sol resplandecente. 1 Mas este deus, formado de luz e pensamento, é ao mesmo tempo «cavalleiro sublimado», tem caracteres humanos; não permanece á antiga na região abstracta das idéas, vive comnosco, dos nossos sentimentos e paixões, inspira Santo Ignacio, ama com Santa Thereza, combate ao lado do Gama, que diz: A ley tenho daquelle a cujo imperio 1 Eleg. 11. Que padeceo deshonra e vituperio Este Christo é o da Renascença. O velho Apellon do idealismo dorico tornou a humanisar-se, apparecendo, vivo e nú, a chorar nos presepes humildes, ou pendurado ao collo turgido da madona que o amamenta; surgindo do seio mystico do povo para inundar de gloria a mente dos poetas; transformando-se da realidade mais mesquinha na abstracção mais ethereamente sublime: Deste Deos homem, alto e infinito, O judeu e o protestante, os homens do livro, escravisados á lettra, agrilhoados aos textos, carecem d'essa bagagem religiosa: nós não, que trazemos a crença na piedade espontanea do pensamento. A dependencia do Papa é a segurança das nossas duvidas e o penhor da nossa liberdade; da mesma fórma que a vontade do Imperador nos deixa livre, a um povo de fidalgos, a acção do nosso braço. Eis-ahi como na Renascença raciocinava o hespanhol, castelhano ou portuguez, em opposição ao movimento protestante. Eis-ahi o estado mental que os Lusiadas exprimem: esse estado plastico da consciencia, acclamando tudo quanto à realidade offerecia ingenuamente bom, denodadamente 1 Lus., c. 1, 65. -2 66. forte, sensivelmente bello, e que por tudo isto parecia aos homens d'então absolutamente verdadeiro. ** Que admira, portanto, esta confusão moral e litteraria da Antiguidade e dos tempos christãos ? Que admira o proposito de imitar Virgilio, se a gloria do Gama, piedoso como Eneas, era a apotheose de um povo que reproduzia o romano? D'ahi vem a justa-posição constante da mythologia classica e da christan, do olympo e do empyreo, a Biblia dando a mão a Homero, e, confundidos n'uma mesma apotheose, todos os symbolos em que a imaginação dos povos representou os seus ideaes: Do peccado tiverão sempre a pena E' que a alma creadora da Renascença, chamma viva, feita de fé e de vontade, absorvia e queimava tudo no seio da sua crepitação palpitante, levando os contrastes até ao paradoxo, e pondo Baccho a adorar o Espirito Santo: Ali tinha em retrato affigurada 1 C. III, 95. A companhia sancta está pintada Aqui os dous companheiros, conduzidos N'outro logar, é Tethys quem conta o martyrio de S. Thomé, com requintes de theologia, incitando os portuguezes á propagação da fé 2; Tethys que, para destruir o effeito paradoxal do episodio, cáe no paradoxo maior ainda de confessar do empyreo: Aqui so verdadeiros gloriosos Divos estão; porque eu, Saturno e Jano, Fingidos de mortal e cego engano; So pera fazer versos deleitosos Servimos. 3 N'outro ponto, é Baccho a desencadear o temporal, e o piedoso Gama soccorrendo-se à sua devoção: Divina guarda, angelica, celeste, |