Imagens das páginas
PDF
ePub

phenicios, quando Carthago chegou a avassallar a Africa, a Italia e a Hespanha.

Tendo como alma-mater a Piedade, que o é tambem na epopeia virgiliana, os Lusiadas teem com ella um Terror differente da serenidade olympica. do Imperio antigo. Alliado ao Commercio, o Terror compõe as physionomias conhecidas dos homens da India, soldados e mercadores a um tempo, com a espada n'uma das mãos, a balança na outra, parecendo destacar-se de algum baixo-relêvo retirado. das ruinas perdidas de Ninive, ou de Assur.

Traduzirá esta physionomia da historia do imperio portuguez no Oriente, fidelissimamente retratada nos Lusiadas a influencia das origens do nosso sangue ibero, porventura affin do sangue africano? Veremos tambem n'isto um traço genealogico, segundo vimos que existe na physionomia celtica do caracter nacional? Ou será o Terror camoneano, esse Terror portuguez dominador da India, apenas um phenomeno natural do tempo, e condição necessaria da empreza que reunia o Occidente e o Oriente, fundindo-os, como nos Lusiadas se acham, sobre a redondeza da terra subjugada pela energia da vontade heroica?

As descobertas maritimas foram incontestavelmente o facto culminante da historia da civilisação na Renascença. O poeta que as canta, e o povo que n'essa obra desempenhou o primeiro papel, tem o seu logar marcado entre os rarissimos prophetas da humanidade. A epopeia celebra um estado actual da alma collectiva e um acto da sociedade contemporanea esse estado é nos Lusiadas o do optimismoidealista conforme o exprimia o caracter nacional; esse acto são as descobertas geographicas dos portuguezes.

A chronica conta: o poema canta e glorifica. Uma registra, a outra consagra. N'isto a epopeia se distingue da historia; mas o caracter historico é inseparavel da epopeia, por dous motivos: porque a authoridade da tradição é porventura a mais fundamental e a mais espontanea do espirito humano; e porque elle carece de ir procurar a passados remotos, tão remotos que se percam nas nuvens da phantasia, a imagem de estados afortunados que o presente contradiz sempre.

Quando os livros sagrados contam a genealogia dos deuses, fazem-n'a invariavelmente provir de um principio mythico; da mesma fórma, quando o rapsoda narra a historia do heroe, transmittida oralmente no decurso das gerações, essa historia entronca-se na dos deuses, perdendo-se no crepusculo do passado indefinido.

Camões, portanto, canta e celebra a historia do povo author da façanha, inspirado por um patriotismo quente, que não deve confundir-se com o applauso aos seus contemporaneos. Com os fastos d'este povo vae formando o quadro da sua vida inteira. Nas suas mãos a historia é uma evocação. O sentimento da realidade inspira-o na escolha dos episodios caracteristicos, e a physionomia nacional apparece nitida na sua pureza. Essa verdade exacta, psychologica e historica, eis-ahi finalmente o que, juntando-se ao caracter scientifico da paixão universal do tempo, constitue o traço verdadeiramente epico dos Lusiadas, como expressão da physionomia real e actual da nação portugueza.

Hymno de gloria de um povo, quando esse povo preside á civilisação europeia, os Lusiadas são o symbolo synthetico do momento mais glorioso dos tempos modernos da Europa.

III

Agora, que já classificamos o poema, depois de discorrermos sobre a natureza da arte e o caracter d'essa fórma especial d'ella, chamada poesia, é tempo de vêrmos os dotes do poeta, que para si tomou a gloriosa empreza de cantar um povo heroico em uma epocha de heroes.

A qualidade essencial nos poetas é a sensibilidade. A alma ha de vibrar-lhes com energia e persistencia ao mais leve sopro da intuição. Nas artes que produzem symbolos representativos materiaes, como as chamadas artes plasticas, comprehende-se que uma tensão excepcional da intelligencia possa produzir resultados confundiveis com os que sáem dos estados patheticos da alma. Mas na poesia não,

nem na musica: embora n'esta ultima o caracter vago e indefinido do symbolo sonoro possa originar, em quem ouve, um estado pathetico differente ou opposto ao da intuição do artista, e até variavel no ouvinte conforme o estado de espirito em que se encontra. E' esse o limite, mas é tambem o condão excepcional da musica.

A palavra, porém, é mais nitida e expressiva, embora a poesia partilhe, até certo ponto, as propriedades da musica, no rithmo do verso e na onomatopea. O musico e o poeta, porém (e o poeta principalissimamente), cujos estados mentaes são os symbolos commoventes de quem os escuta, hão de ter a alma afinada como harpa eolia, que, suspensa nos ramos da arvore da vida, vibre cantando hymnos e elegias ao sopro das virações do senti

mento. E' por isso, pois que a vida se compõe mais de amarguras do que de alegrias; é porque as sensações violentas do proprio enthusiasmo consomem tanto ou mais do que os collapsos da desesperança, ou as crises da afflicção; é porque o poeta vive pela imaginação, n'um instante, a vida de muitos homens: que a sua existencia, em regra, é um tecido de infortunios e um longo soluço abafado cruelmente pela morte. Delicioso infortunio, porém, o d'estas victimas da humanidade! Pagamos-lhes todos em amor a paixão que soffreram por nós, para nos revelarem, como é seu destino, alguns raios da luz que rebrilha nos horisontes crepusculares do sentimento, inapercebiveis á vista simples.

Póde estabelecer-se como regra que um poeta valeu tanto mais, quanto mais desgraçado foi na sua vida. A idéa de um poeta feliz, farto e satisfeito, é antipathica ao instincto popular, sempre seguro. Um poeta é uma paixão que encarnou em figura humana; e o proprio de todas as paixões é o infortunio, por isso mesmo que, na vida, a fortuna provém da ponderação, do equilibrio, do juizo, contrario a toda a especie de cogitações enthusiastas.

Antes de proseguirmos convem portanto deixar assente que o infortunio da vida de Camões, os seus tormentos e a sua brevidade, não são cousas que devam commover os juizos do critico; embora possam e devam recordar-nos a imperfeição constitucional da existencia humana. Não se concebe um Camões feliz no meio da sociedade desvairada do tempo de D. João II, ou de D. Sebastião, e mais ainda no meio da chatinagem e da orgia da India. Póde affirmar-se que o poeta não teria sido quem foi, se, em vez de partilhar a sorte de outros poetasheroes que cantou -de Duarte Pacheco, o que es

[ocr errors]

de

creveu com fogo a ode homerica de Cambalaan; Albuquerque, o que escreveu com raios a epopeia de um imperio alongado desde a Arabia até á China - tivesse deixado numerosa prole, aconchegada de meios, ennobrecida, ainda que não attingisse a grandeza dos aventureiros sem escrupulos, pelo menos na mediocridade dourada que Horacio, no tempo de Augusto, e no nosso seculo classico João de Barros, gosavam contentes, esfregando as mãos n'uma satisfação egoistamente quieta.

A vida do heroe e a vida do poeta são um martyrio permanente: um pelos impulsos da ambição activa, outro pela vehemencia das intuições devorantes. E quando a vis poetica toma, como em Camões, o caracter epico, a sua alma vibrante estremece a um tempo com as crises do sentimento e com as crises egualmente commoventes do patriotismo, da philantropia e da religião. Deus, os homens, a patria, a sociedade e a historia, o passado, o presente e o futuro, a terra e os céos infinitos, agitam-se-lhe na imaginação candente, revolvendo se em torno d'esse problema nodal da affectividade humana, da affinidade electiva, do amor pessoal, do eterno feminino, da mulher, emfim, que, sendo o proprio coração de tudo, se torna o symbolo por excellencia poetico da existencia.

Quem quizer medir o grau de capacidade intuitiva de um poeta, estude-lhe as mulheres: está ahi a prova da sua sensibilidade-da sensibilidade que é a faculdade primaria, fonte, berço, ou nucleo de todas as outras.

Nos Lusiadas ha tres mulheres: Venus, Maria a formosissima, e a linda Ignez. Em todas ellas se vê o traço fundamental do caracter feminino: a meiguice. São todas tres medianeiras; e os tres episo

« AnteriorContinuar »