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Porto-Typ. de A. F. Vasconcellos

Sá Noronha, 51

869014

Do

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Ha bons vinte annos - mais de metade do tempo que ao homem é dado para andar por seu pé no mundo achava-me eu fóra de Portugal, insulado em meio das charnecas bravias da Mancha, quasi sem mais livros do que as obras de Camões, na edição da Bibliotheca portugueza, e um Virgilio por onde aprendêra na escóla.

O enthusiasmo que desde a infancia me produziam os Lusíadas, a inclinação espontanea do meu genio para as lettras, a distancia da patria, as evocações inseparaveis da soledade, excitadas pelos aspectos de uma natureza agreste, e, por sobre tudo isso, a temeridade propria dos annos, levaram-me a escrever um livro, 1 de que a obra de hoje é directamente filha.

1 Os Lusíadas: ensaio sobre Camões e a sua obra, em relação á sociedade portugueza e ao movimento da Renascença.- Porto, 1872.

Discutido, criticado, defendido, com vivacidade e até com acrimonia, esse volume desappareceu rapidamente das estantes dos livreiros; e d'então até agora não o quiz reimprimir, por entender que, na sua primitiva fórma, ficava demasiadamente abaixo das exigencias do assumpto. Estava inçado de erros, continha puerilidades, carecia de ser refundido para não ser de todo indigno, nem do publico, nem, sobretudo, do culto que toda a minha vida tributei a Camões, e se acrisola tanto mais, quanto mais vou, ao descer para a velhice, vendo como desgraçadamente os tempos se repetem, e estes fins do seculo XIX se parecem com o acabar soturno do nosso seculo de ouro.

Annos depois, em 1880, já regresso á patria, e assistindo ao Centenario de Camões, tornou-me o desejo de refazer a obra de 1872; porém as labutações da vida não me deixaram aquelle remanso e quietação de animo indispensaveis para o trabalho critico.

Dir-se-hia então que Portugal inteiro acordava para o arrependimento, e que o verbo camoneano, descendo em lagrimas de fogo, incendiava as almas portuguezas n'um d'esses renascimentos que ás vezes as nações experimentam, sacudidas pelas lembranças da historia. O tempo chamava-nos, pois, a todos, velhos e moços, para o campo da acção; e o melhor modo de prestar culto a Camões era, em vez de lhe commentar as obras, seguir-lhe os conselhos, levantando em pé, gloriosamente, a patria que elle tanto amou.

Para o verdadeiro diluvio das expansões d'esse

tempo, contribui eu tambem com o meu voto, e ao publico peço desculpa de o inserir n'este logar como documento da genuinidade d'estas considerações retrospectivas.

Alegram as festas de hoje, porque exprimem a alegria do povo. Ainda que elle apenas trate de se divertir nas funcções com que o Centenario se celebra, ainda assim é bom. Os mortos não dançam, nem cantam. Ainda que se diga santanario, ou septenario, e Camões se arrisque a uma canonisação á velha moda: ainda assim é bom. Se toda a gente fosse critico, friamente capaz de julgar e distinguir, todos seriam scepticos. E é indispensavel que ao lado do juiz se ouça o advogado, ao lado da critica a eloquencia. Nem faz mal um tudo nada de rhetorica. Os enthusiasmos e as illusões teem um nobre papel no concerto harmonico dos córos civicos. Uns teem a bossa da veneração admirativa, outros a bossa da independencia irreverente: cada qual, no seu logar, uma parte na orchestra.

E', porém, muito maior o numero dos primeiros do que o dos segundos, pela razão simples de que para admirar basta ter o coração aberto ás bellas impressões espontaneas. Para julgar e ser irreverente, é porém necessario ter nascido mais forte, ás vezes mais secco, e sempre susceptivel de governar o sentimento proprio - cousa rara. O povo, quando se extasia admirativamente, é incapaz de dar a razão do seu acto, porque é a si proprio que, por uma illusão subjectiva, se consagra no symbolo que venera. No dia de hoje Camões é ao mesmo tempo uma infinidade de typos para a infinidade de creaturas arrastadas pelo enthusiasmo do Centenario.

Para o atheu, é o atheu; para o republicano, é uma especie de Catão. O proprio petroleiro será capaz de achar no poeta um precursor; da mesma fórma que o erudito descobre um Camões scholar, e o reaccionario se acha retratado no amor do throno e do altar. O estouvado cria um Camões brigão; e o pacato e honrado mercador descrevel-o-ha homem de sereno porte, gestos medidos, bom filho, bom esposo, bom pae, economico, sabendo governar a vida,

1 No jornal O Commercio Portuguez. - Porto, 10 de junho de 1880.

e capaz de ganhar dinheiro: um genio! bem diverso d'estes poetas de agora.

Tal é a sorte de todos os homens eminentes que o povo ergue á altura de symbolos.

Ao lado do povo estão, porém, os que se dizem seus interpretes. Esses asseguram-nos hoje que o enthusiasmo do Centenario accusa, acima de tudo, como synthese, a profunda vitalidade do nosso patriotismo.

Deve ser assim. A sociedade Primeiro de Dezembro affirma annualmente a mesma cousa; e todos os annos pelos fins de julho se ouvem foguetes e hymnos a proclamar o nosso amor pelo feliz systema que nos rege. Patria, Independencia e Carta são ao que nos asseveram— das com intimo fervor; e o calendario romano está a pouto de ceder o logar ao nosso calendario politico.

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venera

Será, porém, louco atrevimento lembrar agora, no delirio da festa, que ámanhã, quando se dissipar a fumarada das salvas, e os eccos dos hymnos se tiverem irradiado e perdido, voltará a repetir-se a palavra de hontem, a triste opinião arraigada da desordem da nossa vida, dos perigos creados pelos nossos erros? O papel de cardeal-diabo, ou do escravo dos cortejos nos triumphadores na velha Roma, não é decerto brilhante, nem seductor, sem deixar por isso de ter sua nobreza.

As salvas, os hymnos, as procissões, os espectaculos, as luminarias, os foguetes, são cousas inoffensivas em si. A força dos sentimentos póde tornal-as excellentes; mas a tonta illusão de um povo desvairado póde fazel-as perigosas. Os tiros ensurdecem, e o fumo cega. Estrondos e nuvens dissipam-se breve; e para além, fica o silencio e o vasio. Quando os tiros teem pontaria e balas o canhão, o resultado é mais seguro. Cáem os baluartes por terra, e das ruinas surgem cidades novas.

O nosso pensamento é porém inteiramente pacifico. Quereriamos que as salvas do Centenario ferissem para deitar por terra o miseravel casebre de intrigas, de miserias, de cobiças, de insensatez, em que habitamos. Quereriamos que os hymnos fossem leis sábias, para restaurar a nossa anemia intellectual e economica. Quereriamos ouvir os córos de um povo eloquente e audaz, conscio dos seus direitos, fiel aos seus deveres, paciente para o trabalho, virtuoso para consigo, nobre para com todos. Quereriamos vêr banida a mediocridade insulsa, a petulancia arrogante e chocha, a simonia, a abjecção - e azorragados todos os vendilhões.

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