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segundo que deixou o encargo ao seu succes- | sor, tendo apenas destinado para a egreja a quantia de dois mil cruzados. Eis aqui porque os frades querem as obras e não o dinheiro. Ficais satisfeito com esta minha explicação? -Satisfeito e agradecido, sir. Garcia de Rezende. Extorquiram os reis aos frades o que estes herdaram do povo, amedrontado com as penas do inferno. Quem sabe se o povo o retomará ainda aos reis?

Crêdes vós, por ventura, perguntou Garcia de Rezende com ar de incredulidade, que o povo chegue a poder mais que os reis e que o papa?

-Hoje não. Amanhã... Deixemos, porém, as coisas do futuró que só a Deus pertencem, e tractemos das que ao presente nos trazem a este logar. Os vossos pedreiros acharam pouco o dinheiro para pedra e cal. Pois bem! Venceremos a difficuldade com a maior economia d'estes materiaes, não construindo no templo parede de mais tres palmos e meio de grossura.

Garcia de Rezende olhou para a abobada e para a grande espessura das paredes que não tinham podido com ella, e sorriu-se por não chamar louco ao architecto. Este não cuidou de o convencer naquelle momento, e disse-lhe apenas sem nenhuma hesitação:

- Dentro em tres dias vos apre sentarei o debuxo da obra.

Com effeito, no praso indicado Martim Lourenço cumpria a promessa. Garcia de Rezende, que era muito entendido em desenho e architectura, conheceu que se tinha rido sem razão, e que o genio do architecto lhe suggerira meio de reduzir a mui pouco a grossura das paredes que tanto embaraçara aos outros.

A reedificação começou logo. Primeiro que tudo se construiram sob a direcção de Martim Lourenço, as paredes lateraes do templo; não uma só de cada lado com a grossura proporcionada ao peso que havia de ter a abobada, mas duas muito delgadas, de tres palmos e meio, conforme a promessa do architecto. Para dar a resistencia necessaria a estas duas paredes separadas por um espaço de treze palmos, travaram-se transversalmente desde o cruzeiro até á fachada principal por outras seis paredes que são as que servem de repartimentos entre as capellas lateraes, continuando-se até ao tecto e prolongando-se por cima d'elle para o outro lado, a fim de ligarem, por esta forma, as seis paredes transversaes de uma fachada lateral com as da outra da parte opposta, e ambas as fachadas entre si. Sendo, porém, tão larga a nave da egreja, como se construiram sem desabar seis paredes na altura do tecto? Por modo muito simples. Estribando-as sobre arcos de granito que são os que hoje dividem a abobada em seis segmentos eguaes. Mas, attendendo á grande largura e pouca espessura das seis

paredes por cima do tecto, importava dar-lhe maior solidez para firmeza e conservação de toda a fabrica. Por isso, foram travadas na linha media e longitudinal por uma nova parede, que prende tambem de poente a nascente a fachada anterior ao cruzeiro. Por um systema em tudo similhante se travaram em baixo os alicerces, ficando assim completo o esqueleto da egreja.

Esqueleto lhe chamámos e com razão. As duas paredes medias e longitudinaes, uma superior á abobada, outra inferior ao pavimento e, por tanto, ora invisiveis para quem estiver dentro do templo, correspondem ao sterno e á columna vertebral do thorax, as paredes transversas, visiveis sómente entre as capellas lateraes, ás costellas, pois se articulam tambem por cima da abobada e por baixo do pavimento com as longitudinaes.

Martim Lourenço, como lhe não permittissem fazer obra sumptuosa e magnifica, tal qual podera imaginal-a, suppriù com o ingenhoso da fabrica a falta das grandezas architectonicas. Apartou-se do plano commumente adoptado na construcção dos templos, para, segundo parece, imitar a estructura do peito humano. Que grande e bella idéa, se esta foi em verdade a sua, edificar a casa destinada ás preces communs á maneira d'aquelle tabernaculo individual de crenças e de adorações!

Por effeito da travação ingenhosa da fabrica interior, ficou o templo, da parte de fóra, alto, livre e desacompanhado, sem escoras, botareus ou outras obras de reforço, como para melhor representar em sua grandeza e simplicidade a maior e a mais simples de

todas as idéas a idéa da Divindade.

Todavia, no principio, a apparencia do todo, sem a abobada e os telhados, que haviam de occultar as construcções superiores, sem o pavimento que tinha de encobrir os alicerces, era extravagante e grotesca. D'ahi proveiu á obra incompleta o nome de gaiola com que a designavam, e ao architecto o mau conceito em que o vulgo logo o teve e que augmentou com a sua prolongada ausencia. Porque, como não podesse assentar a abobada em cima das paredes, cuja consolidação exigia o decurso do grande espaço do tempo, pediu a el-rei D. Manuel que lhe permittisse o ausentar-se em quanto os annos lhes não davam a precisa firmeza.

Martim Lourenço sahiu para fóra do reino. Visitou e estudou attentamente os grandes edificios da França, as velhas egrejas da Italia, as graciosas cathedraes de Inglaterra, e por fim as elegantes construcções de Cordova e Granada. Aqui serviram-lhe de muito as noções que na Africa adquirira da lingua e costumes dos moiros para comprehender e apreciar os primores do estylo moirisco. Gastou dez mezes nesta peregrinação e quando

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CARTAS D'ALGUNS BISPOS PORTUGUEZES
A proposito da Tentativa Theologica
(Concluido de paginas 264 do vol. xv)

Carta escrita por ordem de S. Alteza o Serenis-
simo Senhor D. Gaspar, Arcebispo de Braga, ao
mesmo auctor e sobre o mesmo assumpto

'Sua Alteza me ordena signifique a V. R.ma a estimação muito particular com que recebeu o livro de que V. R.ma é o auctor muito respeitavel, e que as doutrinas nelle expendidas se hão de fazer estimaveis dos que são verdadeiramente sabios; porque supposto o mesmo Senhor dellas se acha ha muito tempo sciente, comtudo agora as vê illustradas pela douta pena de V. R.ma com tanta erudição e formosura, que com gosto especial as recorda e as abraça, e se persuade que o publico admirará a eloquencia de V. R.ma e ficará convencido pelas exuberantissimas provas e repetidas auctoridades com que as manifesta para utilidade publica, que sempre fará conhecer a V. R.' o muito que o estima. Deus Guarde a V. R.ma muitos annos. Braga 29 de Outubro de 1766.

ma

De V. R." ma

muito obsequioso servidor, e
venerador

Francisco Jose de Villas Boas.

Carta do Bispo de Miranda, D. Fr. Aleixo Henriques de Miranda, Religioso de S. Domingos, escrita ao mesmo auctor e sobre o mesmo assumpto

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Esta bem viva imagem, que V. R.ma me offerece no seu livro, do seu grande e dilatado estudo, é na presente epocha tão util ao estado, como importante aos Senhores Bispos do Reino. Parto emfim legitimo de um illus. tre filho d'aquella mesma congregação que se deu um Tomasino á França, deu outro a Portugal.

Que sentimento porem me não opprime agora vendo V. R.ma me muito antes que que chamasse á sua aula, se anticipou a minha pratica á sua theorica; e sem que me fosse dictada pratiquei a sua doutrina? Desfruto porem a gloria de que as minhas concedidas dispensações, que tanto ruido tem feito no meu bispado, e talvez nos mais do reino, consigão a approvação de um tão consumado mestre, no seu tão verdadeiro como trabalhado livro.

Bem receio eu que este pela ira de Turrigiani seja mandado logo ao carcere dos prohibidos; mas não dirá delle o Papa ao Embaixador da França ser suppositicio e falso como lhe disse da Bulla Apostolicum Pascendi.-V. R.ma o intitula-Tentativa Theologica;-eu lhe chamara-Tentação de Bispos; se bem que muito temo seja nenhum, ou raro o que chegue a cahir na tentação.

É certo, Senhor, que os Bispos quanto beberão na sua primeira fonte o depositarão na de Roma; mas este que então foi deposito, hoje é dominio, e qual será o braço que hoje o desaposse delle ?

Que apositas, que verdadeiras e sempre venerandas antiguidades não junta V. R.ma para instruir os bispos de Portugal no seu famoso livro? Mas que responderá a ellas Roma? Responderá, ainda mal, que estas mesmas verdades tão sinceras e puras, como antigas, se acham hoje antiquadas e como taes de nenhum vigor.

Queira Deus que o Clemente XIII' succeda um Alexandre v, e cazo porem de não succeder, no Tribunal Divino daremos ambos conta: eu das dispensas que dei, V. R.ma das que nos ensina a dar. Em fim V. R.ma do que escreveu, eu do que dispensei: de cujos fun damentos darei tambem conta ao Soberano, se S. Magestade, como sempre esperei, e ainda espero, chamar á sua real prezença os seus Bispos, para definirem nella em tanto aperto materia tam importante qual é a salvação de não poucos de seus vassalos. Deus nos salve a todos, e guarde como pode a V. R.ma. Bragança 9 de Novembro de 1766.

Obrigado orador de V. R.ma

Fr. Aleixo Bispo de Miranda.

do Papa Reinante o qual era contrario ao ministerio Turrigiani era o Cardeal Secretario de Estado de Portugal e principalmente opposto ao Marquez de Pombal, primeiro ministro e secretario de Estado dos negocios do reino. (Nota do copista).

2 Tentativa Theologica-era o titulo do livro do Padre Antonio Pereira, e que era assumpto das cartas. (Idem).

3 Clemente xi era o Papa então reinante, que quasi todo o pontificado esteve differente com Portugal, e ouve então a ruptura com Roma que deu occasião ás disputas. (Idem)..

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE

SCIENCIAS MORAES E SOCIAES

AS FORMAS DE GOVERNO

(Continuado de paginas 5)

balho, e a mudança das condições do traba lho exige a mudança proporcional das instituições. Cada invento industrial é uma força que imprime á sociedade uma direcção deterAs formas de governo apparecem-nos como minada; as descobertas industriaes tambem uma projecção das idéas que vão successiva- têm partido politico, e são ellas que se collomente servindo de eixo ao movimento da cam á frente d'este ou d'aquelle; supponha-se humanidade; se é que não é Deus, como dizia não é Deus, como dizia o aperfeiçoamento das machinas existentes, Hegel, é certo que a idéa tem a omnipoten-a invenção d'outras e a applicação dos procia; este nada que não occupa espaço tem a cessos scientificos á agricultura; será possiforça de mover o mundo social; as formas de vel, nesta hypothese, a organisação actual da governo são antes de tudo um phenomeno propriedade? psychologico coordenado com todos os outros do mesmo tempo, e variavel com elles para dar em resultado a justiça, que é uma relação de harmonia.

Como vemos, a faculdade predominante explica a mudança da forma de governo; vê-se em philosophia da historia que toda ella encontra nesta successão das faculdades a sua explicação; é todavia necessario buscar a causa d'esta causa, e investigar por que razão é que a humanidade, primeiro sensibilidade, é depois imaginação e por ultimo abstracção. Supposta a humanidade e a natureza, a primeira, a principio pouco numerosa, a segunda, a principio fortemente productiva para o pouco numero dos homens e para as suas pequenas necessidades, o homem podia viver sem trabalho e dizendo unicamente à natureza-Mãe, sustenta-me.

Augmente-se a população, decresça ou persista a producção natural, o trabalho tornarse-á necessario, e suppondo a persistencia da razão entre os termos da progressão, esta necessidade irá augmentando, e actuando constantemente sobre o homem determinará as evoluções do seu espirito.

Ide alargando o terreno d'um povo selvagem proporcionalmente ao augmento da sua população de modo que elle na extensão d'esse terreno encontre sempre o sufficiente para se sustentar da caça e da pesca; esse povo ficará selvagem; encurtae-lhe porém o terreno de modo que não encontre nelle possibilidade de se alimentar pela caça e pela pesca, agricultal-o-á, e a agricultura será para o selvagem um baptismo que o iniciará na civilisação. Desde que o homem dobrou o corpo para a agricultura, o espirito dobrou se-lhe para a reflexão.

A sabedoria popular consagrou num adagio esta razão de progresso; é com effeito com o aguilhão da necessidade que a providencia conduz o homem pelo caminho das suas evoluções; todas as vezes que a necessidade faz reclamações, a intelligencia move-se; este primeiro movimento muda as condições de traVOL. XVI.

É com as condições de trabalho que varia principalmente o predominio das faculdades, que desenvolve depois força irresistivel na modificação do mundo social; porque, como disse um escriptor, a grande força é sempre a força da intelligencia. As formas de governo são, pois, além d'um phenomeno psychologico, um phenomeno industrial; e, em parte, o clima, a configuração do territorio, a mesma edade dos povos coordenam-se tambem com todas as outras causas.

Explicada a razão mais immediata da mudança da faculdade predominante, descendo do geral ao particular, pergunta-se-Em que epocha estamos? A que condições devem satisfazer os governos convenientes agora para a generalidade dos povos da Europa?

E facil responder à primeira perguntaque estamos na epocha da abstracção.- As idéas de unidade, de egualdade, de principio -idéas da abstracção, o residuo que ella deixa nos cadinhos de todas as suas analyses, apparecem em tudo, tudo se modifica segundo ellas, direito politico, direito civil, costumes, religião.

A idéa de unidade apparece em Kant como a categoria da razão pura, a que da ultima altura domina todas as outras; Fichte apodera-se d'essa idéa para fazer resaltar o mundo do eu; Schelling e Hegel constroem o mundo com ella; sem saber que seguia o pantheismo da Allemanha, na inconsciencia da sua immensa espontaneidade, Fourier intitula a sua obra-Theoria da Unidade Universal-e, ligando os phenomenos de todos os mundos, reduz todos os principios ao de Newton - a attracção; Saint-Simon, intelligencia de lynce para penetrar os muros do passado, intelligencia donde sahem os germens da philosophia positiva, repete que o principio unico é a gravitação universal, e a analyse cheia de genio de Augusto Comte identifica-se tantocom a idea de unidade, que, apagando a distincção das sciencias em empiricas e racionaes, pretende lançal-as todas nos moldes d'um mesmo methodo.

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Em religião a idéa de Deus muda-se de Deus-pessoa em Deus-principio. Relativamente ao creador e á creação, a profissão de fé da intelligencia é força e materia1;-e é necessario não ver nestas palavras uma profissão de fé de atheismo e materialismo; as idéas de força, principio, são unicamente um modo de concepção de Deus; com effeito dentro do monotheismo ha dois modos de conceber Deus, como uma pessoa e como uma força, e estes dois modos de concepção humana resultam da faculdade que predomina no homem; quando predomina a imaginação, Deus é pessoa, a imaginação que personalisa tudo, personalisa-o; quando predomina a abstracção, esta faculdade, que reduz tudo a principios, faz de Deus um principio, uma força.

Quanto mais se extender o predominio da abstracção mais esta concepção se irá generalisando, e é tão religiosa esta como a primeira; unicamente para se distinguir do atheismo é necessario que a força, considerando-se immanente em tudo como condição ontologica universal, se tome todavia por anterior e superior aos entes que aviventa.

Esta concepção é fatal, porque, se Deus creou o homem á sua imagem e similhança, > homem por seu turno, nas suas diversas evoluções, affeiçoa a idéa de Deus ás formas do seu espirito.

espiritual para um mundo que não fosse a terra; em vez de se enterrar nesta, como um eixo sobre que se movesse, a idéa de fraternidade impelliu-se para o céo para dominar d'alli o mundo social. Além d'isto, obedecendo á lei-nada está na intelligencia que não esteja primeiro nos sentidos-a concepção de Jesus nasceu no coração, e para subir á intelligencia foi necessario que decorressem seculos.

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A evolução todavia é visivel. Bacon e Descartes, as guardas avançadas da revolução franceza, continuam-n'a. Quando se dessolda um élo da cadéa, os outros não tardam em se separar d'ella; destruindo o principio da auctoridade em sciencia, estes dois homens destruiram-n'o em tudo; desde o momento em que se disse duvidae examinardes para não acrediteis em quanto não virdes - nada de auctoridade em sciencia,—a duvida e o exame estavam levantados como um machado terrivel sobre todas as coisas. Da evidencia cartesiana sahiu a liberdade em sciencia, da liberdade em sciencia a liberdade em tudo, e desde que a liberdade se substituiu á auctoridade, a juncção da idéa de liberdade com a idea de Jesus, a fraternidade, produziu a pomba que as reune a ambas, a idéa de egualdade, fechando-se assim o triangulo luminoso e sancto da revolução franceza.

Se as consequencias, porém, eram legitimas, É desnecessario dizer que das nações des- não passaram logo á realisação; foi a evoluaparecem todos os dias, fugindo para a unição ainda que as trouxe. Aos sermões de dade, os usos e os trajos que lhes eram proprios, que as linguas esquecem a cada bora um dos seus idiotismos para se submetterem ao jugo da grammatica geral, e que em politica a idéa de egualdade fermenta no homem todo, como uma semente que foi lançada á terra pelo braço vastissimo do principio universal. Á luz da evidencia vê-se pois que a epocha em que estamos é de abstracção.

Esta epocha tem o seu começo de existencia na revolução franceza; a revolução franceza foram as dores do parto que a produziu; a sua concepção, porém, encontra-se mais longe; desde que Socrates passou do polytheismo ao monotheismo, esta epocha começara a gerar-se.

Jesus passou a idea de Socrates de sciencía para religião, e á idéa da unidade de Deus accrescentou a da fraternidade dos homens; esta idéa porém encontrava, oppondo-se ao seu desenvolvimento, os antecedentes hierarchicos da Judea, a força auctoritaria da mesma religião, e os poderes politicos que a faziam refluir pela separação do temporal e do

1 O bom acolhimento e a voga mesmo do livro superficialissimo e cheio de ignorancia de Buchner explicam-se pelo titulo. Taxarmos de superficialidade e ignorancia o livro, que é reputado o evangelho dos materialistas, parecerá ousadia demasiada; mas tere

mos occasião de provar o que dizemos.

Bossuet, chamando a attenção sobre a idéa de egualdade, succedeu Voltaire, destruindo a rir tudo que se lhe oppunha; tristissimo como um globo de nuvens que traz no seio uma tem, pestade, Rousseau traçou com fogo os fundamentos do novo edificio; a revolução franceza levantou-o, e, como quem sacode um archote immenso, Napoleão, brandindo a espada das victorias, sacudiu para os pontos do globo o incendio da liberdade, e desde então esta palavra - liberdade é a primeira que as crianças aprendem, a ultima que os moribundos pronunciam.

Com effeito, Napoleão teve por missão generalizar a revolução franceza; passando por cima da cabeça de cada povo, a sua espada promulgou os direitos do homem. Como mostra Luiz Blanc, Napoleão foi, sem o saber, o continuador da revolução; tudo o que elle como homem queria fazer, nada d'isso se fez, ficou porém o que a Providencia queria fazer por meio d'elle-democratisar as nações. Hoje a liberdade é o programma de todas.

Levam annos as arvores para crearem raizes e se tornarem frondentes, e a da liberdade, necessitando de terreno desbravado e revolto para que não lhe apertem e lhe suffoquem o tronco as ervas parasitas do passado, precisa de seculos para se robustecer; a evolução pois ainda não está completa, ainda não veio o se

timo dia, o dia em que o espirito creador possa olhar de todos os lados, e dizer, começando a descançar→→→ está bem. lamino D'este programma immenso liberdade o que é que se temerealisado?

As nações hoje têm a forma da liberdade e não a liberdade. A liberdade é exterior e interior, negativa e positiva; a liberdade exterior é uma negação, a negação de obstaculos; a interior é uma affirmação, a affirmação de tudo o que é necessario para que cada força do homem tome a direcção do seu termo; a liberdade completa é a independencia total dos elementos do homem; em quanto um d'esses elementos estiver escravisado, por esse que está preso estão mais ou menos presos todos os outros; ora a liberdade para o corpo está na remoção de obstaculos; para a intelligencia está na luz; para a vontade, e por isso para todo o homem, é condição de liberdade a condição de liberdade do corpo, a da intelligencia, e, além disso, uma outra em que se envergonham de fallar os publicistas e de que se esquecem muito os politicos, pão. A questão de liberdade em politica é pois uma questão de organisação formal, intellectual, economica e moral. Além d'isto a liberdade é um meio; para a organisação total e positiva da sociedade por meio da liberdade é necessaria tambem a determinação positiva dos seus fins.

A questão de liberdade sendo complexa, a realisação practica deve começar por um dos elementos, e é claro que deve começar pela remoção dos obstaculos; a Prometheu amarrado que lhe aproveitariam a columna de fogo indicando um caminho e a arvore da abundancia permittindo-lhe que o seguisse? Foi tambem assim que a evolução da liberdade começou; foi da tomada da Bastilha, uma prisão, que se datou o reino da liberdade, e a abolição das alfandegas interiores e das corporações de artes e officios, obstaculos á actividade, foi em quasi todas as nações um dos primeiros actos da revolução liberal.

Da liberdade exterior a evolução deve continuar pela organisação intellectual, e d'ahi passar á organisação economica; em quanto a evolução não estiver completa, na tela social em que se tem de fixar a liberdade faltam ainda as suas feições mais caracteristicas. Com effeito, em quanto ha ignorantes, os que estão nas trevas são escravos dos que têm luz; em quanto o pão de cada dia d'uma multidão de homens está nas mãos d'outros, mãos que se abrem ou se fecham pelo arbitrio, essa multidão não tem liberdade; onde está o seu alimento ahi está a sua vontade, que lhes solta um, pode ao mesmo tempo reter-lhe a outra, and more

a mão

É pela felicidade material que se pode chegar á felicidade moral- a liberdade. Os bens a liberdade. Os bens da terra não são unicamente a satisfação do

corpo, são tambem as azas em que se libram as virtudes da alma; não ha virtude possivel nesse paiz que se chama o inferno da fome; a miseria é uma sementeira de vicios. Como o camponez, cujos amores com a terra nos conta o coração amantissimo de Michelet, o proletariado vê na melhoria das condições economicas reluzir o oiro da liberdade.

o

O problema social não foi o estomago que formulou; o estrondo que faz, passando, a torrente do socialismo, não é o rugido do corpo. «Uma familia que de mercenaria se tornou proprietaria, escreve Michelet, respeita-se, eleva-se na sua estima e eil-a mudada; ella recolhe da sua terra uma seara de virtudes. A sobriedade do pae, a economia da mãe, o trabalho corajoso do filho, a castidade da filha, todos estes fructos da liberdade, são, pergunto-vol-o, bens materiaes?»>

Um proprietario diz ao rendeiro das suas terras:-ha eleições; dae-me o vosso voto para o candidato que eu protejo.- As idéas do que se lhe oppõe agradam-me mais, tenho mais confiança no seu caracter.-Não vos pergunto o que vos agrada a vós, intimo-vos o que me agrada a mim. Tendes opinião? Sahi das minhas propriedades. nhas propriedades.- O dono d'uma fabrica tem a mesma linguagem para com os homens que emprega, e os proprios governos, deliciando-se neste ridentissimo aspecto da liberdade, mostram a demissão ás auctoridades administrativas para que chatinem votos, que se pa gam com a dignidade d'ellas e com a justiça de todos.

Os votos que sahem d'esta organisação de coisas não trazem a assignatura da liberdade, mas a marca negra que faz o ferro quente nas costas dos escravos; os deputados não são representantes da nação, mas dos interesses dos que os fizeram eleger; as auctoridades administrativas não são a força que realiza a justiça e a ordem, são os empregados d'um partido; a liberdade assim é um feudalismo politico.

E donde estes males? Das condições intellectuaes e economicas. Quereis abatel-os? Tendes de as mudar.

Todavia, como já dissemos, era necessario começar por este formalismo, passar por esta apparencia de liberdade; mas é necessario tambem não ficar aqui; se a liberdade tem condições formaes, intellectuaes e economicas, segue-se que a forma pela forma é um erro prejudicialissimo, e que é necessario através d'ella buscar a essencia, exigindo á forma que tenha por qualidade fundamental a qualidade caracteristica da humanidade o ser progressiva,- que seja um caminho de declive suave para o futuro e não um talisman contra elle.

D'este ponto de vista podem-se determinar em geral as condições a que devem satisfazer as formas de governos da actualidade e ava

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