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que muito real, é absolutamente impossivel | vem um movimento de oscillação parcial em avistal-a.

«A contractilidade organica sensivel observa-se no coração, estomago, intestinos, bexiga etc.; exerce-se em massas consideraveis de fluidos animaes.

«A contractilidade organica insensivel é, aquella por cujo effeito os ductos excretores reagem em seus respectivos fluidos, os orgãos secretores no sangue que vem a estar em contacto com elles, as partes em que se opera a nutrição nos seus sucos nutritivos, os vasos lymphaticos nas substancias que excitam suas bocas absorventes, etc.: Em todas as partes onde os fluidos se disseminam em massas pequenas, onde são muito divididos, se desenvolve esta segunda especie de contractilidade....>

«A contractilidade organica sensivel corresponde ao que chamam irritabilidade; a contractilidade organica insensivel ao que dizem tonicidade.

«Considerar, com a maior parte dos auctores a irritabilidade uma propriedade exclusivamente inherente aos musculos, como um dos caracteres que os differençam dos outros orgãos; exprimir esta propriedade por uma palavra que lhe indica esta séde exclusiva, é, julgo eu, não a conceber tal qual a natureza a distribuiu por nossos orgãos.

«Os musculos occupam, sem duvida, em relação á contractilidade, a primeira ordem na escala dos solidos animados; porém todo o orgão vivo reage como elles, posto que menos apparentemente contra o excitante que artificialmente lhe applicam ou contra o fluido que no estado natural se põe em contacto com elle para levar-lhe a materia das secreções, da nutrição, da exhalação ou da absorpção1.» Na segunda classe ou propriedades de tecido não admittiu Bichat senão dois generos indivisos: a extencibilidade e a contractilidade do tecido. Em que taes propriedades consistem seus nomes o indicam. Não dependem, como as outras, immediatamente da vida, porém da disposição organica das fibras constituintes dos orgãos.

Bichat viu, pois, nos phenomenos da vida quatro contractilidades differentes e para bem as discriminar adduziu o seguinte exemplo: «Um musculo voluntario contrahe-se: 1.° por influencia dos nervos que lhe vêm do cerebro: é a contractilidade animal; 2. pela excitação d'um agente chimico ou physico, que o excità e leva artificialmente a um movimento de tonicidade analogo ao que é natural ao coração e aos outros musculos involuntarios: é a contractilidade organica sensivel, a irritabilidade; 3. pelo contacto dos fluidos que o penetram em todas as partes para levar-lhe os materiaes da nutrição, e nelles desenvol

1 Op. cit., pag. 70.

cada fibra, em cada molecula, movimento tão indispensavel a estas funcções como nas glandulas á secreção, nos lymphaticos á absorpção, etc.: é a contractilidade organica insensivel ou a tonicidade; 4.° pelo corte transversal de seu corpo, que determina a retracção das extremidades cortadas para o ponto de inserção: é a contractilidade de tecido ou contractilidade por falta de extensão.

«Cada uma d'estas especies póde cessar separadamente num musculo. Se cortardes os nervos, acabareis com a contractilidade animal, porém ficar-vos-ão as duas contractilidades organicas. Impregnae depois o musculo de opio, deixando-o penetrado pelos vasos; debalde o impressionareis com os irritantes, não vos dará movimentos totaes. Acabareis assim com a contractilidade organica sensivel, mas restarvos-á a contractilidade organica insensivel, causa dos movimentos tonicos determinados pelo contacto do sangue.

Matae finalmente o animal, ou, antes, deixae-o vivo, ligando-lhe todos os vasos respectivos ao membro; tirareis ao musculo todas as suas forças tonicas, a sua contractilidade organica insensivel, porém subsistirá a contractilidade de tecido, que sómente cessará quando a gangrena por effeito da interrupção da acção vital sobrevier no membro 1.»

Cingir-nos-iamos nesta exposição á parte respectiva ao assumpto que tractamos, se a doutrina de Bichat acerca das propriedades vitaes não fosse um todo harmonico e indivisivel. Ha em tantas propriedades differentes certa unidade que se explica pelo processo que o auctor seguiu, substituindo á força vital, principio unico, as suas principaes propriedades. Não intentaremos discutir se lhe assistia ou não o direito de fazer tal substituição. O que importa observar é que Bichat prestou grande serviço á physiologia, determinando muito circumstanciadamente os principaes phenomenos vitaes, classificando-os, e estabelecendo as condições em que se observam.

Eis a utilidade da sua doutrina.

Não lhe faltam, porém, muitos e graves defeitos. As differenças entre as duas vidas animal e organica, principal fundamento da classificação das propriedades vitaes, não são tamanhas como Bichat as descreveu. As descobertas posteriores da anatomia e da physiologia têm mostrado a exaggeração em que o illustre reformador cahira, estabelecendo uma separação completa entre as funcções dos orgãos sujeitos à vontade e dos que permanecem extranhos ao seu imperio. Por outra parte, a sensibilidade organica não tem razão de ser. A idéa de sensibilidade importa necessariamente a do conhecimenio de sensação. Ora,

1 Op. cit., pag. 78.

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a sensibilidade organica de Bichat vale o mesmo que sensibilidade insensivel, paradoxo manifesto. Como Haller observara, não se devem chamar sensiveis senão as partes que, vindo a ser tocadas, transmittem ao cerebro mais ou menos intensamente a impressão do contacto. Fazer intervir a sensibilidade em todos os phenomenos da vida, na circulação, nas secreções, na absorpção, etc. é substituir o archeu de Vanhelmont por uma propriedade dos nervos. E se todos os mencionados phenomenos se observam nos vegetaes, como é que nelles se effeituam sem systema nervoso? A divisão da contractilidade em animal e organica é tambem impugnavel. Nos orgãos sujeitos à vontade o estimulo causa a impressão, o nervo transporta-a ao cerebro que por meio de outro nervo determina o movimento, se este se não effeitua sem estimulo e sómente pela força de vontade. Nos orgãos da vida vegetativa nem a vontade impera para produzir o movimento, nem se sabe como o tecido concentra em si a faculdade de sentir e o poder de se mover sem precisar do cerebro.

Bichat e outros physiologistas recorreram neste aperto ao grande sympathico para solver a difficuldade. Os seus ganglios não seriam mais que centros que presidiriam ás funcções da vida organica bem como o cerebro ás da vida animal, e como elle effeituariam os movimentos visceraes. A esta idéa de independencia do systema ganglionar oppõem-se as observações de Cruveilhier e outros anatomicos, de Longet e outros physiologistas, que têm por certo receber aquelle systema filetes nervosos do eixo cerebro-espinhal, e viram mais que por se cortarem taes filetes se tornam os ganglios incapazes de exercer suas funcções. Este facto e os phenomenos intermedios ás duas vidas, como são a fome, a sêde, a necessidade de respirar, persuadem que entre as funcções animaes e organicas não ha aquella completa e total separação que pareceu a Bichat uma verdade incontestavel.

Quanto á contractilidade de tecido, o atrazo da anatomia e mais em particular da histologia em tempo de Bichat o levou a attribuir a esta propriedade phenomenos dependentes de ou tra causa. A contractilidade das fibras musculares que o microscopio descobriu na dartos, na pelle, nas tunicas vasculares, explica as contracções observadas nestas membranas. Mas os factos denominados da tensão ou tonicidade muscular, os movimentos dos polypos, infusorios e outros animaes inferiores sem fibras musculares e sem nervos, os das confervas e outras plantas mais simples, os dos vegetaes vasculares, os do tecido cellular e outros dos animaes superiores hão de attribuir-se á contractilidade, não muscular, mas de tecido, se não quizermos inventar outra palavra para designar a causa que os produz.

A doutrina de Tiedemann ácerca da propriedade fundamental da materia organica não differe essencialmente d'aquella que Brówn ensinara. Todavia, usou das palavras excitabilidade e excitantes para designar o que Brown chamara incitabilidade e incitantes, e alargou mais os dominios d'esta força ou propriedade, suppondo-a existente no ovo, no sangue, em todos os liquidos, em todos os solidos organicos e attribuindo-lhe os mais importantes phenomenos da vida.

Reputando os factos da excitabilidade, totalmente diversos dos phenomenos physicos e chimicos, comparou-os comtudo áquelles que Berzelio chamara de contacto e explicara pela força catalytica1.

Virchow, tomando a cellula como a parte fundamental, como o elemento dos tecidos organicos, e a vida geral do individuo como a somma total das actividades parciaes d'aquelles elementos, conheceu a parte importante que poderia tomar em seu systema a irritabilidade de Glisson, ampliada e desenvolvida por Tiedemann. Assim, depois de examinar os principacs phenomenos da vida, entendeu que toda a actividade especial, despertada por algum estimulo, tem por fim ou fazer funccionar uma parte ou nutril-a ou formal-a. E d'ahi a divisão da irritabilidade em funccional, nutritiva ou de formação 2.

Claudio Bernard adoptou as duas primeiras especies, suppondo que a segunda e a terceira não são mais que uma só. Entretanto Virchow não quiz de modo algum admittir a existencia de tres propriedades essencialmente diversas, porém modos, condições, exercicios differentes d'uma só. Neste presupposto estabeleceu a divisão mais conforme ao seu sys

tema.

Acima de todas as classificações, de todos os nomes, de todos os systemas, está a existencia manifesta e incontestavel da contractilidade.

A materia organica reage contra a acção dos estimulos. Cada orgão responde a scu modo e conforme o genero da sua actividade vital: a glandula segrega, o nervo excita, o musculo contrahe-se. Cada elemento contribue com sua actividade parcial para a manifestação geral do orgão. Em cada cellula, por effeito dos estimulos, redobra a intensidade ou a rapidez de suas funcções. Esta propricdade que em varios gráus se observa nos diversos tecidos chama-se irritabilidade, e comprehende não só a faculdade que elles têm de receber a acção dos estimulos, mas tanıbem a de lhes responder por seus movimentos, ou por qualquer manifestação da actividade vital.

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Estes movimentos consistem, no maior numero dos casos, em se alongar por uma parte e se encolher por outra parte a substancia organica. Eis a propriedade que Bichat denominou contractilidade, e que, referida aos musculos, se chama contractilidade muscular. Convém que se observe na linguagem physiologica esta differença de significações, que nem sempre os auctores attendem em seus escriptos, usando indistinctamente das palavras irritabilidade e contractilidade, sem advertir em que a segunda não é mais que um acto parcial, um caso particular o restricto da primeira.

A natureza da contractilidade é desconhecida, assim como a da attracção e a da affinidade, das quaes totalmente differe. Porque se attrahem todas as partes materiaes? Porque gyram os planetas á roda do sol? Porque se contrahem os tecidos organicos quando estimulados?

Não ha a faculdade da vontade nos atomos e nas moleculas dos corpos sublumares nem nos planetas nem nas cellulas ou nas fibras dos orgãos. Logo a unica resposta a taes perguntas é a seguinte: Deus assim o quiz.

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Seja AMM'B um fio que se acha em equilibrio pela acção de forças exteriores que actuam sobre cada um dos seus pontos, e de forças interiores ou elasticas desinvolvidas entre aquelles pontos depois da applicação das primeiras forças. A e B designam as duas extremidades do fio; e Me M' são dous pontos d'elle, infinitamente proximos um do outro. Pois que o fio está em equilibrio, é claro que esse estado ainda deveria subsistir, pela acção das mesmas forças exteriores, se considerassemos que a parte d'elle representada por AM' se tornava invariavel tanto na fórma como na posição, e que a parte M'B ficava invariavel na fórma, e ligada á primeira parte pelo ponto M', em roda do qual poderia todavia girar; de modo que o fio só conservasse a sua elasticidade no ponto M', ou antes, no elemento da curva, correspondente áquelle ponto.

Donde resulta que, para ter logar o equilibrio do fio elastico, será necessario que o conjugado resultante do transporte ao ponto M', de todas as forças exteriores que actua rem sobre M'B, seja destruido pela elasticidade desinvolvida naquelle ponto.

Seja aquelle conjugado. Decomponhamos p' cu dous binarios que tenham respectiva

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mente por eixos uma perpendicular ao plano osculador conduzido por Me a tangente tirada por aquelle ponto; e sejam o primeiro conjugado (donde provém a flexão do fio no ponto M') e e' o segundo (que produz a torsão naquelle mesmo ponto).

Posto isto, vejâmos agora como se poderia determinar a componente (1) do conjugado proveniente do transporte ao ponto M de todas as forças que actuam sobre MB.

Para o conseguir, imaginemos que se tirava pelo ponto M' uma recta parallela ao eixo de e, e procuremos as componentes de q' e ' em relação áquella recta.

Como o plano osculador conduzido por M é parallelo á tangente tirada pelo ponto M', segue-se que o eixo de e é prependicular ao eixo de q', e, por tanto, que é nulla a componente de o, proveniente de '.

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O eixo de forma com o de e' um angulo infinitamente pequeno; por tanto, se desprezarmos as quantidades de segunda ordem, será um o valor numerico do coseno d'aquelle angulo. Donde resulta que é a componente de o, proveniente de s'. (2)

Resta determinar a componente de 6, proveniente das forças applicadas nos pontos comprehendidos entre Me M'. Para isso decomponhâmos cada uma d'estas forças em duas; uma d'ellas situada no plano osculador conduzido por M; e a outra perpendicular áquelle plano. A primeira componente não poderá influir no valor de o; e como o ponto de

ap

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(1) Este conjugado tem por eixo a tangente tirada pelo ponto M.

(2) As forças applicadas na parte M'B do fio influirão sempre do mesmo modo no valor de 6, quer as transportêmos parallelamente a si mesmas ao ponto M, quer ao ponto M'; como se reconhecerá facilmente em vista das considerações que se seguem no texto. (3) Vej. ns cquações (b) da pag. 629 do t. 1.o do Tractado de mechanica, por S. D. Poisson, 2.a edição de Paris.

(4) Poisson, logar citado, pag. 627.

LITTERATURA E BELLAS-ARTES

SEMPRE-NOIVA

Chronica eborense

(Continuado de paginas 24)

VII

A FAMILIA DO BISPO DE EVORA
Não tenhas o perigo em nada

Que a virtude esforçada
No grande medo e temor
Se estima e é estimada.

BERNARDIM RIBEIRO-Eglogas.

Na tarde d'aquelle mesmo dia, em que succederam no adro da Sé os acontecimentos referidos, estava reunida parte da familia do bispo de Evora, D. Affonso, numa sala da sua residencia. Sentada num escabello, D. Brites de Vilhena contemplava com expressão de maternal carinho a filhinha, que, a seus pés, uma escrava adormecia no berço. D. Beatriz de Portugal, recostada num estrado, recitava as trovas de D. Diogo de Mello:

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condição, que me acostumei a ellas, como a uma amiga que se não abandona sem grande

custo.

-Porem D. Diogo, tornou D. Brites, queixa-se da mulher que amou e que deu a mão a outro homem...

-«Casada sem piedade!» replicou D. Beatriz. Sem piedade para com D. Diogo e sem piedade para com ella propria, que não fez mais que obedecer a quem não podia resistir. Vós, D. Brites, amaveis a D. Francisco de Portugal, e ouviu Deus que vos ligou os votos ardentes de ambos. Não imaginais, por tanto, a desaventura da mulher que obrigam a fazer o sacrificio doloroso do coração, de todo o seu futuro, de toda a sua felicidade. E quando aquelle a quem ligam a infeliz, como a martyr á roda do tormento, é um ser odioso e desprezivel, que supplicio haverá maior ou siquer egual ao da mulher assim casada?

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Evora.

Que homem aquelle! Que homem! Que homem valente como Sansão!...

Quem? Repetiu Beatriz.

Bello como Absalão! Bom como José! Quem? Interrogou pela terceira vez com impaciencia a dama, batendo rijo com a mão sobre o estrado a ver se com este ruido espantava o velho das comfóra do para campo parações biblicas.

-Martim Lourenço, disse finalmente Domingos. Martim Lourenço, aquelle que vos salvou a vida, aquelle que m'a salvou tambem a mim. Porque, sem a minha nobre e gentil senhora, que eu mais amo no mundo, como poderia viver?... Ai! que só de o pensar se me querem encher os olhos de agua...

-Que graça tens, meu bom Domingos, a

N. 2

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-Perdão, minha nobre senhora D. Beatriz. Desculpae ao pobre velho, que a alegria e a admiração confundem. Estive com elle na egreja de S. Francisco. Ouvi-o, fallei-lhe, abracei-o. Explicou-me aquella obra do templo. Foi quem a começou. Veiu agora para a acabar. -É o architecto, de quem ha dez annos ninguem sabia? Perguntou D. Brites de Vilhena. É o mesmo. Porém, talvez ainda não tenhais noticia do que succedeu hoje no adro da Sé?

- Não sabemos nada, disse Beatriz. Meu pae e meu irmão não voltaram dos paços, aonde foram jantar com sua alteza.

Martim Lourenço, accrescentou Domingos a meia voz, ia sendo homisiado !

-Santo Deus! Exclamou Beatriz. Quizeram dar a morte a quem hontem me salvou a vida! Porquê?

O architecto, respoudeu o escudeiro, em ouvindo sandices exaspera-se, em ouvindo injurias enfurece-se. Ora taes coisas lhe disseram aquelles nescios e sandios que o rodeavam, o mestre Pero Vaz, o Matheus Sanches, alvaneu, e outros que...

-Que Martim Lourenço, concluiu Beatriz, em vez de desprezar taes desatinados, pretendeu castigal-os da sua ousadia. Elle era só contra muitos...

Mas fez prodigios de valor, proseguiu Domingos. Atirou con uns pela escada abaixo, afugentou outros, resistiu a todos... A final, a chegada de sua alteza atalhou a desordem. Vi tambem o sur. D. Francisco de Portugal abraçar a Martim Lourenço deante de todos, na presença do rei e do povo.

Que gentileza! Disse D. Brites de Vilhena. E é meu, só meu, aquelle coração tão bom, tão nobre e generoso !...

Tão grande, tornou o escudeiro, como não os ha hi ja hoje em dia. Os portuguezes da tempera do santo condestavel, d'aquelle espelho de cavalleiros, d'aquelle exemplar de heroes, vão acabando. A esses deve Portugal o não jazer agora sob o jugo de Castella; a estes que degeneram, aos que vierem depois...

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Ides saber agora tudo sem mais rodeios. Quando a côrte sahiu da Sé, chamou-me o sir. D. Francisco e disse-me: «Viste aquelle homem que eu abracei no adro?» Vi, senhor meu ; e admirei-vos a vós e a elle. «Procura-o; dize-lhe da minha parte que lhe desejo fallar em casa hoje depois das quatro horas da tarde. » Quiz advertir quão impossivel me seria buscar o desconhecido sem saber onde, mas o sûr. D. Francisco tinha já tomado o seu logar no prestito real. Desci embaraçado e indeciso os degraus do adro. Vi tres caminhos; um para o norte, outro para o poente, outro para o sul. Escolhi o segundo por me ficar em frente do nariz. Tomei pela rua da Sellaria abaixo e cheguei á praça. Defronte da casa de Ruy de Sande encontrei uma mulher chamada Martha Gil. Foi quem me valeu, que sabia que o architecto estava na egreja de S. Francisco. Martha relatou-me por miudo todos os successos do dia de hoje desde um grande arrezoado que fez certo franciscano até á entrada da côrte na Sé. Ensinou-me uma trova de Gil Vicente que eu não pudera ouvir no adro,.. Oh! que rica trova!

E o escudeiro, com a liberdade que tinha entre os filhos do bispo de Evora, os quaes trouxera ao collo, riu a bom rir só com lembrar-se da satyra do poeta.

Uma trova de Gil Vicente! Disse Beatriz, cuja curiosidade o rir de Domingos aguçara. Versos do Gil dos autos! Ora repete-os para os ouvirmos, meu bom Domingos.

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Ai! minha senhora que não os sei. -Não te creio, velho arteiro! Tu, que de ouvir uma vez só os cantares do teu amo D. Francisco, as esparsas de D. João Manuel, as trovas de Garcia de Rezende, as apprendes logo... não sabias agora a que te ensinou Martha Gil! Bem ou mal... dize-a!

Estas ultimas palavras pronunciou-as Beatriz de Portugal tão imperativas, que o pobre Domingos só pôde responder titubante:

-Não sei... não posso... não devo... Valha-me a Senhora do Anjo! O que havia de sahir-me d'esta bocca palreira!

1 A Senhora do Anjo, que tem sido sempre muito venerada em Evora, é a Senhora da Annunciação.

Num altar de nave central da sé está a imagem de Nossa Senhora e defronte o Anjo annunciador. Aquella imagem é de marmore branco e talvez obra dos fius do seculo xv. Foi pintada a côres não sabepintaram os apostolos de marmore da porta principal, mos em que tempo, provavelmente quando tambem ha poucos annos raspados e lavados das tintas que os faziam parecer de barro.

leira. Como porém, o braço esquerdo estivesse pegado Hoje a Senhora do Anjo está vestida e com cabelao tronco, passaram-lhe os vestidos por cima e pozeram-lhe um terceiro braço de madeira.

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