Imagens das páginas
PDF
ePub

execrações, mostrar-nos-á que as formas de governo d'um povo são quasi sempre as que devem ou podem ser, que ellas não têm como razão de existencia o arbitrio d'um ou de muitos homens, que este só pode conveniente ou inconvenientemente acceleral-as ou retardal-as, e que o mundo social, como todos os mundos, não é dirigido pela liberdade do homem, mas pela força irresistivel da essencia das cousas, por Deus; mostrar-nos-á tambem a historia que os progressos sociaes não estão dependentes, como effeitos de causas, das formas do governo, e que as formas de governo são formas, como diz o nome, e que não mudam a essencia das cousas a que se applicam. São vestidos; se ás vezes dão elegancia ao corpo que vestem, se mesmo ás vezes o endireitam, na maioria dos casos tomam todas as suas corcovas, deixam-n'o como elle é. Provemos todas estas cousas, e determinemos as condições harmonicas com as diversas formas de governos.

[ocr errors]

Depois a plebe nobilita-se e a nobreza faz-se plebe; o direito é lei geral, todos têm o mesmo direito civil, e o direito é mais humano; o escravo já não pode ser morto nem maltratado sem justa causa; o filho já não pode ser vendido, nem morto, já não é uma cousa nas mãos da familia; ha egualdade civil; e a forma de governo é o despotismo.

Recorrendo á Europa moderna, eu vejo o direito seguir as mesmas evoluções; primeiro é hypothetico, desegual, é o direito privilegio. Depois vai-se generalisando, toma mais unidade, vai-se tornando egual, vai-se desprivilegiando.

Em seguida chega á unidade, é egual para tcdos, todos são eguaes perante a lei.

Nos primeiros dois periodos o governo dos povos da Europa variava; em Veneza e na Suissa era a republica; em Portugal, na Hespanha, França, etc. a monarchia; mas sob as republicas de Veneza e de Suissa e sob as monarchias do resto da Europa o estado do Ha um systema em philosophia que se direito civil e politico era na essencia o mechama o pantheismo; esse systema diz smo; o mesmo gráu de liberdade ou de escratudo é Deus.- Eu, para o acceitar, modifico o vidão numa parte que noutra, se não é que principio, dizendo-Deus penetra em tudo;- sob as monarchias havia mais liberdade que até, sem a offender e destruir, penetra na li- sob as republicas. berdade do homem; o homem julga que caminha para onde quér, e caminha para onde Deus quer; é o homem que determina os passos, mas foi Deus que fez a estrada; o homem põe, diz o povo, e Deus dispõe. É uma verdade profunda.

Postos estes principios, a historia é, na opinião dos pantheistas, a evolução de Deus, e-tudo o que é real é legitimo. Este principio, principio estabelecido pelo pantheismo de Hegel, ha uma eschola que o applica a tudo; chama-se a eschola historica. Eu, que modifiquei o principio do pantheismo, modifico-lhe proporcionalmente as consequencias; digo a historia é a operação dos homens sob a direcção de Deus, é o movimento de uma roda de que Deus é o eixo. O principio -tudo o que é real é legitimo nego-o, e ponho este ontro-é legitimo tudo o que se harmonisa com as formas do espirito.

Ora, recorrendo á historia, começando na Romana, attentando nas evoluções do direito que rege esse povo, eu vejo, primeiro, um direito que não tem generalidade, que é um para um, outro para outro, que se formula em gestos, em palavras sacramentaes, em hypotheses; não ha egualdade, é tudo diversidade; e a forma de governo é a monarchia aristocratica.

Depois os gestos, as acções da lei, os actos legitimos acabam; as hypotheses tornam-se mais geraes, o direito torna-se escripto, mas é ainda tão duro como o bronze em que se fixou; ha desegualdade de direitos, mas menor do que na primeira epocha; a forma de governo é a republica.

1

Tomamos um exemplo ao acaso. «Parece que a Suissa, escreve M. Thiers na Historia da Revolução Franceza, esta antiga patria, da liberdade, dos costumes simples e pastoraes, não tinha nada a receber da França, e era a unica que não tinha que soffrer a revolução; entretanto de que os treze cantões eram governados com formas republicanas, não resultava que a equidade reinasse nas relações d'estas pequenas republicas entre si, e sobretudo nas suas relações com os seus vassallos. O feudalismo, que não é senão a hierarchia militar, existia entre essas republicas, e havia povos dependentes de outros povos, como um vassallo do seu suzerano, e gemendo sob um jugo de ferro. A Argovia, o cantão de Vaud, dependiam da aristocracia de Berne; o baixo Valais do alto Valais; os bailliatos italianos, isto é, os valles do lado da Italia, de diversos cantões. Havia, além d'isto, uma multidão de communas dependentes de certas cidades. O cantão de Saint-Gall era governado feudalmente por um convento. Quasi todos os paizes sujeitos se tinham tornado taes com condições contidas em cartas postas ein esquecimento, e que era prohibido lembrar. Os campos quasi por toda a parte dependiam das cidades, e estavam submettidos aos mais revoltantes monopolios; em nenhuma parte a tyrannia das corporações de artes e officios era tão grande. Em todos os governos a aristocracia se tinha lentamente apoderado da universalidade dos poderes. Em Berne, o primeiro d'estes pequenos Estados,

1 Histoire de la Révolution Française, Paris, Furne, Jouvet et C.ei, tom. 2.o, pag. 663,

algumas familias tinham-se apoderado da auetoridade e tinham excluido para sempre todas as outras; ellas tinham o seu livro d'oiro, onde estavam inscriptas todas as familias go

vernantes.

A Suissa não era, pois mais do que uma bella lembrança e um admiravel sólo; politicamente não apresentava senão uma cadêa de pequenas e humilhantes tyrannias. »

No terceiro periodo, hoje, as formas de governo têm variado; a França tem tido algumas vezes a republica; mas sob as monarchias representativas do resto da Europa não haverá tanta ou mais liberdade do que sob as republicas que tem tido a França?

Conclusão pois que as republicas têm existido sem gerarem a egualdade civil, a mais preciosa de todas as egualdades, como aconteceu em Roma, em Veneza e na antiga Suissa; pois que as monarchias têm existido sem destruirem a liberdade civil e politica, como acontece hoje na Inglaterra, na Belgica, entre nós, etc.; pois que têm existido sem tambem a gerar, como aconteceu em Roma e nos primeiros tempos da Europa, segue-se que os progressos sociaes não são effeito das formas de governo e que é necessario distinguir entre realidade governo e formas de governo.

E esta distincção que hoje se não faz; julga-se que a forma de governo é tudo, cada um encara uma forma como a cornucopia em que estão e donde podem sahir todas as abundancias, outra forma como a boceta de Pandora, de que se podem escapar e desencadeiar-se todos os males.

Tudo o que está num povo actua sobre esse povo; tendo porém influencia, a forma de governo não tem a que lhe attribuem; tomamn'a por principio e eixo de todo o progresso, quando só é resultado d'um progresso e principio d'outro; mas para ser principio d'est'outro, é necessario que seja o resultado do antecedente.

A influencia da forma de governo sobre a sociedade é a mesma que a da palavra sobre o pensamento; a palavra é filha do pensamento; mas, filha cheia de força, robustece-o, é o ar em que se elle expande, de que vive e se alimenta; mas do mesino modo que se não concebe uma palavra sem uma evolução da intelligencia a que ella corresponda, assim uma forma de governo precisa da anterioridade d'uma evolução social que lhe sirva de base. Seria a essencia da sociedade o resultado d'uma forma? Seria esta anterior áquella? «Supponhamos, escreveu Victor Considérant, um povo selvagem que vive em republica; fal-o-ão passar a um periodo superior dan do-lhe uma monarchia, ou reciprocamente? De certo que não. Mas um povo selvagem tornar-se-á civilisado, se lhe fizerem adoptar

1 Destinée Sociale, tom. 1.o, pag. 184.

a industria, se o iniciarem nas descobertas das sciencias, nos processos das artes, se a sua cabana se torna casa, se o seu kraal se torna aldeia,-e isto, qualquer que seja a forma do seu governo, isto tanto se a sua. administração e as suas leis estão nas mãos d'um rei, como se estão nas d'um presidente da republica, ou nas de tres consules.»

Distinga-se pois a realidade da forma. A realidade, como vimos pelas evoluções do direito em Roma e na Europa, é fatal, não pode mudar-se, porque se funda em leis psychologicas, porque os povos, como os homens, começam a vida pela sensibilidade, continuam-n'a pela phantasia, e prolongam-n'a até que morrem pela abstracção; e a sensibilidade e a phantasia são faculdades que não podem gerar esta idéa- egualdade, e a abstracção é faculdade que não pode deixar de a gerar. São tres arvores; cada uma dá os fructos que estão na essencia da sua seiva, no principio da sua vitalidade.

[ocr errors]
[blocks in formation]

Vejamos.

Epocha da sensibilidade. Quando no homem predomina a sensibilidade, a lei moral e juridica tem pouca força, a sensibilidade agita-se e revolta-se contra ella, tende á desordem; ora, como todo o governo exterior existe para completar e garantir a lei natural, quanto menos força esta tiver, mais força deve ter a lei exterior; portanto num estado em que a lei natural tem a minima força, a lei positiva deve ter a força maxima, o governo melhor neste caso é o absolutismo. E como, predominando a sensibilidade, ella pode predominar mais ou menos, esse absolutismo pode ser mais ou menos forte, e a forma do governo pode variar, ficando todavía sempre no absolutismo; sendo aristocracia pura-aristocracia democracia monarchia pura.

Enumero por esta ordem, porque é a natural; o absolutismo vai decrescendo desde a aristocracia pura até á monarchia pura.

Parecem-me evidentes todas estas doutrinas; mas quer-se a prova? Imagine-se um povo selvagem, predomina nelle a sensibilidade, não respeita nada, bulha e guerra é o estado

em que se compraz; que governo se lhe ha de dar? a republica ou a monarchia representativa? Fazia tudo isso em cacos, ou não ha de ter governo, ou ha de ter o absoluto, mas se não tiver governo não se civilisa, é pois conveniente que tenha o absoluto.

Segunda epocha.- Epocha da phantasia. -Nesta epocha o espirito do homem vive na phantasia, a lei natural tem mais força do que na epocha passada, mas tem ainda pouca; é pois conveniente que o governo tenha menos força, mas que tenha ainda muita. Mas como predominando a phantasia, ella pode predominar mais ou menos; como pode estar mais ou menos perto da sensibilidade donde partiu da abstracção para onde caminha, por isso o governo pode ser mais ou menos absoluto, pode caminhar da monarchia pura até ás raias da monarchia democratica. Nesta epocha, a lei natural lança já vivos clarões no espirito do homem, mas a sensibilidade ainda atira os seus galões; é a epocha dos heroes e da poe

sia, da lei e da aventura; é-se sublime no bem, profundo no crime, é pois necessario um governo que deixe desenvolver aquelle e que tenha força para reprimir este.

Epocha terceira.- Predominio da abstracção. Nesta epocha a abstracção é a faculdade predominante no homem, e esta faculdade gera as idéas de egualdade, liberdade e fraternidade; com effeito uma idéa abstracta eguala e fraternisa todas as idéas que estão contidas na sua extensão, libertando-as da diversidade. Esta forma do espirito exige um governo que esteja em harmonia com ella, sob que possam existir a liberdade, a egualdade e a fraternidade; mas como predominando a abstracção, ella pode predominar mais ou menos, e como, para que a liberdade fructifique, é necessario que haja illustração e virtude, como esta pode ser mais ou menos, por isso sob esta epocha o governo pode e tem de ser monarchia democratica ou democracia pura. (Continúa). J. FREDERICO LARANJO.

SCIENCIAS PHYSICAS E MATHEMATICAS

APONTAMENTOS PARA A HISTORIA
DA PHYSICA EM PORTUGAL

II

A causa do santelmo inquirida
nos escriptores portuguezes do seculo XVII

No tempo em que o genio audaz dos portuguezes se atrevia a essas navegações ousadas, que são o espanto da historia, e os nossos mareantes andavam, a Deus misericordia, devassando ignorados mares, ou retrilhavam a nunca apagada esteira dos galeões lusitanos, succedia cortar-lhes a tempestade o passo na carreira aventurosa, e, abarcando-os na envergadura coruscante das suas azas, correl os ao fundo. Vivem na escriptura não poucas relações d'essa longa e dolorosa odyssea, que, se não teve Homero que afinasse a cythara pelas suas agonias e pavores d'ella, cantando-a inteira, incendeu na mente de Camões muitas das suas estancias sonorosas, e inspirou a Cortereal os versos maviosos, em que a mesma saudade prantea o triste fim da desventurada Leonor de Sá.

Mas nem sempre fechava o naufragio essa cadea de ancias e horrores, chamada tormenta. Muitas vezes, entenebrecida a luz do dia, ou cerradas mais densas as trevas da noite, o navio arfava no dorso erriçado das, aguas. Desdobravam-se-lhe as vagas em derredor, ameaçavam-o bramindo, cresciam contra elle furiosas, arremessavam-se-lhe des vairadas, mas quebravam no costado ou eram por elle cuspidas. E a fragil embarcação, desenxarceada

e aberta pelo engrossar do temporal, corria á vontade das ondas, que, galgando as amuradas e alagando-a por ambos os bordos, porfiavam em sossobral-a.

Enfiada de susto e rendida do trabalho a tripulação desfallecia, pois tinha por sem duvida que contra a indignação de Deus não vale esforço.' E quando os mares tão altos e cruzados na vaga do escarceu, que punham espanto, pareciam comer o navio, e este redemoinhava á flor do pégo, prestes a afundar-se, subito um como lume de vela scintilla nos mastros, logo tremeluz nas gaveas, apoz fulgura nas antennas, ou paira a cavalleiro do navio. Via-o a marinhagem com a esperança a reflorejar-lhe no coração, e, cahindo toda em joelhos, clamava voz em grita - Salva, salva, Corpo Sancto. E estavam salvos, porque era com elles o indefesso protector dos navegantes S. Pedro Gonsalves Telmo, e não havia homem que podesse dizer que depois de visto o sancto farol fizesse naufragio.

[blocks in formation]

gos maritimos era desde afastados tempos reconhecida, e accrescentassem tal nome como appellido ao do sancto gallego. Favorecem esta conjectura o tracto e relações, que de remotas eras ligavam as duas peninsulas. Com a Hespanha e em principios do seculo XII o testemunha a Historia Compostelana, dizendo como por ordem de Gelmires, Arcebispo de Santiago, vieram de Pisa e Genova para Galliza marinheiros e constructores de navios1. Outras noticias, que esclarecem o assumpto, relata o gravissimo Florez na sua España Sagrada e mais algumas se encontram em abalisadas memorias. Das communicações entre Portugal e a Italia fallam, entre outros, o casamento do nosso primeiro rei com uma princeza da casa de Saboia,3 a nomeação do illustre genovez Manoel Pessanha para almirante do reino em tempos de D. Diniz, o auxilio que algumas galés tambem genovezas prestaram a D. Pedro 15, os navegadores que d'alli vieram na alvorada dos nossos descubrimentos, e a amizade intima entre a senhoria de Veneza e el-rei D. Manuel, que a honrou chamando para padrinho do principe seu filho a Pedro Paschaligio, embaixador d'aquella republica'.

como advogado dos homens de mar. Da pri- | a intercessão de S. Pedro Gonsalves nos perimeira affirmativa convencem as velhas narrações dos seculos XIII e XIV, e entre estas as mui auctorisadas do processo dos seus milagres e Legenda da sua vida, todas as do seculo XV e a maior parte das que se deram á estampa até quasi ao cerrar do seculo XVI. E em todas ellas é aquella voz tão alheia, que não ha encontral-a uma só vez como sobrenome de Pedro Gonsalves. A segunda doutrina a historia, ensinando o que d'aquelles radiosos lumes fabularam gentios e christãos. Denominou os Castor e Pollux a gentilidade, e julgava-os nuncios de boas novas, se flammejavam dois, disse-o Helena e prognostico de. ruim agouro, se luzia um só.2 Ở christianismo nomeava-os com diversas invocações. Diremos d'ellas o que consta com maiores probabilidades. Clareadas as trevas do paganismo pelo facho luzentissimo do evangelho, soccorriam-se os navegantes a diversos patronos, consoante a nação d'onde vinham. E, como notassem que com a apparição d'aquelles luzeiros coincidia quasi sempre o amansar da tempestade, costumaram-se a ver nelles a manifestação corporea da presença dos seus favorecedores, e appellidaram os com os nomes d'estes. Assim os marinheiros saxonios chamavam-lhes Estrellas do Archanjo ou dos pés de S. Nicolau; os que acompanharam o arrojado Fernando Magalhães na sua trabalhosa circumnavegação diziam-os Sancta Helena, S. Nicolau e Sancta Clara. E Maluenda assevera ainda que, demais d'aquelles nomes, os conheciam tambem os navegantes pelos de Sancto Anselmo, Sancta Hermia, Sancto Hermeto e S. Thermo. Mas parece que de Sancto Erasmo, martyrisado em Formias no tempo de Diocleciano, e especialmente venerado na Italia, onde Caieta lhe guardava o corpo, se derivou o nome de S. Telmo.

5

Tinham os italianos entranhada veneração por aquelle santo e em honra sua cognominaram castello de Sant-Elmo, S. Elmo ou Sant-Eramo, uma fortaleza, que em começos do seculo XIV levantaram em Napoles. Andava-lhe já então viciada a denominação na linguagem vulgar, e bem pode ser que, invocando os mareantes d'aquella nação a S. Erasmo, sob a desformada voz de Sant-Elmo, por beneficios que d'elle recebessem, passasse assim modificada á peninsula iberica, onde

1 Fr. Henrique Florez, España Sagrada, t. xxIII, pag. 154, 245 e seg. e 263 e seg.

2 L. Annaei Senecae Philosophi Opera quae extant omnia, pag. 684, Antverpiae, 1652 Caii Plinii Secundi Naturalis Historiae libri xxxvII, pag. 187 e 188, Parisiis, 1685.

Fr. Henrique Florez, España Sagrada, t. xxIII,

pag. 157.

Primo volume, et Seconda editione Delle Navigationi et Viagi, fol. 389 vers. 390 vers. e 402 vers. Venetia, 1554.

5 Pierre Giannone, Histoire Civile du royaume de Naples, traduite de l'italien, t. troisième, pag. 178, A la Haye, 1742.

4

Mas o convencimento da presença do sancto, quando a tempestade açoitava os navios, não arraigou sómente no animo rude e aberto a superstições dos homens do mar, tambem os entendimentos polidos, e que se alavam ás altas cogitações da philosophia, se deixaram entrar d'elle. Sabia-se em verdade que, desde centenares de annos e muito antes de Pedro Gonsalves nascer, estavam aquelles festejados lumes descriptos nas chartas gregas e philyras romanas, mas esvaeciam-se sem deixar signal; e da assistencia do sancto patrono dos marinheiros ficavam vestigios nos pingos de cera, que permaneciam onde a luz milagrosa tinha ardido. Não ensombravam duvidas ponto que andava tirado a limpo, extreme de toda a incerteza. Porque, além dos signaes dos pingos, era facto indubitavel a 1 Historia Compostelana, na España Sagrada, t. xx, pag. 198.

2 Fr. Henrique Florez, España Sagrada, t. xxi, pag. 159 e 160, &.

3 Frederico Francisco de la Figanière, Memorias das Rainhas de Portugal-D. Theresa Sancta Isabel, pag. 44 e 45.

4 Ignacio da Costa Quintella, Annaes da Marinha Portugueza, t. I, pag. 18 e seg.

5 Fernão Lopes, Chronica do senhor Rei D. Pedro I na Collecção de livros ineditos para a Historia de Portugal, t. iv, pag. 60.

6 Collecção de noticias para a historia e geografia das nações ultramarinas, t. 11.- - João de Barros, Decada primeira da Asia fol. 32.- Gaspar Correa, Lendas da India, t. 1, pag. 235-&.

7 Fr. Luiz de Sousa, Annaes de Elrei Dom João Terceiro, pag. 4.

8 Idem, Primeira parte da Historia de S. Domingos, pag. 471.-George Cardoso, Agiologio Lusitano, t. 11, pag. 565, &.

apparição do proprio sancto por occasião de desastres maritimos. Como prova certissima d'esta e severa lição a incredulos, colheu Fr. Luiz de Sousa dentre os muitos milagres, narrados pelos agiographos de Pedro Gonsalves os exemplos seguintes: «Lemos, diz, em Santo Antonino na vida que escreve deste Santo, que certos marinheyros vendose no mar salteados de hum temporal tao forte que destroçada a nào, e quebrados os mastros esperavao cada hora ser comidos das ondas, acodirao com efficacia aos merecimentos de S. Pero Gonçalves, e chamando por elle, lhes apareceo clara, e visivelmente, e lhes disse, que aly o tinhao; que nao perdessem animo. É logo abonançou o tempo. E porque a nào ficara em estado que nao tinha com que se poder governar, o Santo se fez Piloto, e a foy governando atè a pòr em parte segura.

Tambem se averiguou, que em uma nào sobindo hum marinheiro à gavia, como he costume, pera meneo das vèlas, foy sacudido da enxarcea por onde sobia com tanto impeto, que sem lhe valer a força com que hia nella aferrado com ambas as maons, foy como voando ao mar. Hia a nào espedida, o tempo era tormentoso. Vendose o pobre homem ficar por popa, e muito longe, chamou polo Santo com grande animo, e fé. Eis que lhe aparece sobre as agoas hum Frade vestido em habitos de S. Domingos, e dizlhe: Eisme aqui filho, chamaste por mim, aqui me tens, nao ajas medo. As palavras forao seguidas de obras: tomouo o Santo pola mao, e metteoo dentro no navio à vista de toda a companha, que estava como fora de si polo que via. E logo desapareceo.1 Paga-se ainda o chronista dominicano de poder estender a escriptura infinito se lhe aprouvesse contar todos os milagres, com que S. Pedro Gonsalves traz obrigados os mareantes 2.

Certo piedosos feitos de ouvir, e de geito para espertar tibiezas, os que nas paginas suavissimas da Historia de S. Domingos alardea um dos mais primorosos ingenhos que viu Portugal. Eram passados alguns annos do seculo XVII, andava accesa em todas as imaginações a crença nestes prodigios, aviventava-a o testemunho unanime de todos os maritimos, que, desde muitos annos e contestemente, affirmavam o patrocinio visivel do santo. D'onde o succeder que alguns escriptores portuguezes, que naquelle seculo intentaram desvendar a origem d'esses scintillantes lumes, já conhecidos pelo nome de santelmo, se deixaram penetrar do mais accendrado mysticismo, attribuindo-lhes a causa a auxilio celeste por intervenção de S. Pedro Gonsalves. E os que lhe affirmavam origem natural,

1 Fr. Luis de Sousa, Primeira parte da Historia de S. Domingos, pag. 469. 2 Idem, idem.

contentavam-se com repetir a explicação dos Padres Conimbricenses. Apontaremos d'elles os principaes, e que logramos ter deante dos olhos na averiguação d'este ponto. Seja o primeiro o elegante e discreto auctor da Ethiopia Oriental, Frei João dos Sanctos.

Narrando os trabalhos que lhe sobrevieram em demanda da India, escreve o sisudo jesuita: A segunda noite da tormenta (que foy aos 9. dias de Julho) estando nos bem atribulados, & quasi desconfiados da saluaçao, a horas de meya noyte pouco mais, ou menos, nos appareceo o Corpo santo em a verga do masto grande, em figura de hua faisca de fogo muito clara, & resplandecente, & d'alli á vista de todos se foy por sobre o masto da mezena, onde o saluou o piloto da nao, da cadeyra, em que estaua gouernando, dizendo: Salue Corpo santo, Salue: Boa viagem, Boa viagem. E toda a mais gente da nao, que presente estaua, respondeo da mesma maneira: Boa viagem, Boa viagem, com muitas lagrimas de alegria. N'este lugar esteue esta luz resplandecête hum grande espaço de têpo, & d'alli desappareceo á vista de todos.

Os mareantes d'esta carreira tem pera si com grande fé, que esta luz, que lhe apparece nas tormētas, he S. Pero Goçaluez Telmo, natural de Palencia cidade de Castella velha, Religioso que foy da orde de S. Domingos, pollo qual ordinariamente chamao, quando se vem opprimidos das tempestades, & o nomeaỡ ou por S. Pero Gonçaluez, ou por S. Telmo, ou por Corpo santo, & muytas vezes lhe apparece nesta figura de luz muy resplandecente, & entao se tem por seguros, & ordinariamente se abrandao co sua vinda as tormentas, & tempestades, como nos aconteceo nesta viagem, & por isso lhe tem todos muyta deuaçao, posto que nao falte que tenha pera si, que esta luz, que apparece nestes tempos, he natural, causada das exalações que se leuantao; o que os mereantes nao consentem, porque tambem dizem, que no mesmo lugar, onde esta luz apparece, acharao alguas vezes cera verde, como que cayra de algua vela de cera, que alli ardera. E na vida deste santo se conta, que alguas vezes appareceo aos mareantes visiuelmete, quando chamavao por elle nas tormentas, & os liurou dos perigos do mar.

No tepo que esta luz nos appareceo, vi hum soldado, à presumia de prudente, & esforçado, estar posto de joelhos na nao diante della, batendo nos peitos, & dizendo com muitas lagrimas; Adorovos, meu Snor S. Pero Gonçaluez, vos me saluay neste perigo por vossa mesiricordia; repetindo isto muitas vezes. Eu, & outro Padre, que junto delle estauamos, lhe dissemos, à aquella adoraçao só a Deus se fazia, & se deuia, & nao aos santos, por tanto

orasse d'outra maneira. Ao que elle respondeo com outro mayor desproposito, dizēdo: Meu Deus será agora que deste perigo me tirar. Entao o deixamos em sua porfia.................

« AnteriorContinuar »