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Antes de prosseguirmos na análise ou na dissecação de semelhante preconceito, será útil ponderar as seguintes observações do insigne pianista e erudito musicógrafo português, sr. José Viana da Mota:

«Grande vantagem tiram os Inglêses e os Americanos da desvantagem de não terem companhias líricas permanentes: contratam artistas dos três grandes países produtores de óperas, da Itália, da França e da Alemanha, para cantarem o repertório de cada nação na língua em que as obras foram escritas, ouvindo assim cada obra na sua forma original.>>

«Seria óbvio repetir aqui quanto se tem dito a respeito da dificuldade de traduzir uma poesia para outra língua do que aquela em que o poeta a ideou, pois a sonoridade, o ritmo, o espírito, a construção, a sintaxe de cada língua formam um elemento indispensável e intraduzível da poesia, constituem mesmo a sua parte fundamental.»

«A ideia de um poema está tão indissolúvelmente ligada ao idioma, que rigorosamente não há tradução de uma obra poética. Traduzir é alterar, como diz o batido rifão: «traduttore, traditore».

«Ora se isto se dá no domínio da literatura

pura, em grau muito mais intenso se verifica quando a palavra é aliada à música, porque então já não é só o ritmo, a sonoridade da língua que se altera, é ainda a declamação, a acentuação que se corrompe. Imagine-se o que é o «Barbeiro de Sevilha» ou a «Carmen» cantada em alemão. Mas também o «Tristão» perde por ser cantado em italiano ou francês: perde a significação filosófica e simbólica, inveterada no idioma alemão e que a música reproduz admirà velmente. Mas, mesmo entre idiomas de mais próximo parentesco, a trasplantação altera sempre o carácter: compare-se a «Manon» em francês e em italiano, ou o «Rigoleto» em italiano e em francês. «Quanto mais nacional é a música, mais intraduzível é o «libretto.>>

«Vieram-me à mente estas reflexões, ouvindo a «Aida» depois do «Tristão» e recordando-me da última vez que ouvi a «Aida», que foi em Berlim, com Caruso e a admirável Dostinn (que cantava em italiano as scenas com Radamés). A música de Verdi contém implicitamente a língua italiana, como a de Mozart; e os Alemães nem sabem quanto perdem em ouvir o «Figaro>> e o «D. João» em péssimas traduções alemãs. Uma obra vocal não se deve traduzir (1).»

(1) V. Diário de Notícias, Lisboa, 26 de fevereiro, 1920.

A conclusão que se tira destas autorizadas e sensatíssimas observações é que nenhuma língua, nem sequer o prodigioso italiano, se avantaja ao português, por exemplo, para servir de veículo de interpretação ou transmissão de qualquer criação musical portuguesa - canção popular, lied literário ou ópera - de assunto, inspiração e composição nacional, nossa.

Mas, independentemente dêste caso particular, ¿ poderá ainda ter-se em pé o preconceito de ser o italiano, mais que nenhuma outra língua dêste mundo onde há tantas, a rainha das línguas cantáveis e cantantes?

Não o creio, pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, não me parece fácil demonstrar objectivamente que o italiano literário seja língua mais vocálica, e portanto mais musical, do que, por exemplo, o francês, o espanhol e o português.

E, ainda que o fòsse, tal facto não me demoveria, pois insisto em que todas as línguas possuem bastante elasticidade fonética para se tornarem mais sonoras quando tal lhes convém. As modulações e fioriture, em que tanto se comprazem os artistas do bel canto, não são proibidas a quem cante em chinês, búlgaro ou biscainho.

Depois de ter notado que o alfabeto tem vinte consoantes e apenas cinco vogais, diz a sr.a D. CAROLINA MICHAELIS DE VASCONCELOS que nas próprias línguas onde predomina o elemento vocálico estão em maioria as consoantes. E acrescenta:

«Mesmo na lingua italiana, a língua do belcanto, em que todas as palavras terminam em vogal, há nos catorze versos de um soneto qualquer (têrmo médio) 185 vogais e 221 consoantes. Em portuguès contei 174 vogais e 203 consoantes.» (1)

Vê-se daqui que a nossa língua não faz má figura, com o seu cabedal de sonoridade comparado ao do próprio italiano. A estatística da ilustre professora é até favorável ao português, que na mesma proporção do italiano apresentaria 208 consoantes em lugar das 203 encontradas.

Mas não pára aqui a demonstração scientífica da riqueza musical da nossa língua:

«Em alemão (continua a sr.a D. Carolina) há

(1) Revista Lusitana, vol. 21.0, 1918, pág. 28.

um esqueleto consonântico mais robusto. Temos sílabas com cinco sons consonânticos, por exemplo em pflückst, pflügst, schlägst, drückst, bringst. Em português êle é mais brando e reduzido do que em qualquer outra das linguas neo-latinas, em virtude da queda de l, n, d, g, intervocálico... O ouvido e a língua nacional amam a simplicidade; tendem à maior comodidade em forma e beleza possível, e ao menor esforço possível: ao emprêgo da vis minima. Quási tôdas as sílabas constam de dois ou três sons. Temos dois em dá, li, vi, dè, sé, fé, pé. Temos três em vai, lei, rei, meu, teu, seu; apar de duas vogais uma consoante, ou mais exactamente uma vogal e uma semi-vogal que juntas constituem um ditongo. Em outros casos agrupa-se com a consoante explosiva (p-t-k ou b-d-g) uma líquida ou uma vibrante, por ex. em crê, pra(do), etc. O máximo são quatro sons: duas consoantes iniciais agrupadas, vogal, e uma consoante final (nasal, líquida, vibrante ou sibilante) por ex. em très, cruz, prol, traz, grei, frei, greis, freis. Creio que não há nenhuma com mais de cinco sons. E mesmo entre essas, em que há portanto quatro consoantes, mal haverá uma que seja popular. Só me lembro de trans em transpôr, transparente. Mas tais sílabas, o povo, quando as emprega, alivia-as, dizendo traspor, ou cortan

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