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bem-estar. Para afastar êsse estôrvo à sua maneira de ser moral e afectiva, no andamento do romance, recorreu à orfandade, que assim veio aplanar o caminho ao seu protagonista.

Não contente com isto, o seu aspirante a padre, no romance definitivo, desiste muito a tempo de seguir a carreira. Porquê? ¿ Para ટ્ lhe dar a possibilidade social de uma união com a Morgadinha? Deve ter influido esta razão; mas também porque Júlio Denis se arreceou de pôr abertamente o conflito do padre violentamente arrastado ao têrmo da sua carreira e que, por fim, se decide a abandoná-la. Não estava na sua índole de psicólogo e de escritor aceitar nas páginas do seu romance dramatização tão intensa.

No primitivo esboço sente-se um pouco a tese do Eurico, de Herculano, que, na obra definitiva, se reduz apenas a um episódio restrito na vida de um adolescente.

Mas falemos das duas simpáticas senhoras da casa de Alvapenha, que no romance definitivo ficaram reduzidas à não menos boa ta Dorotea.

Foi pena que assim fôsse e os leitores vão concordar connosco ao saborear a deliciosissima scena que passamos a transcrever:

«No momento em que Valentim se dispu

nha a pôr têrmo à sua visita, soaram à porta duas sonoras pancadas que puseram em excitação os nervos da parte feminina da assemblea.

«Era o portador de uma carta do correio.

«A chegada de uma carta era um acontecimento em Alvapenha. As duas irmãs perdiam-se em conjecturas sôbre o objecto e procedência da epístola, antes de se resolverem a adoptar a única medida que as poderia esclarecer: a sua leitura.

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«< Uma carta! Que lhe parece, mana Genoveva, donde pode ela vir?

«Eu sei, menina. Do procurador...

Não, por certo que não. E daí...

«Valentim, que reparara no carimbo, observou que ela vinha de Lisboa.

«Nova surpresa.

«De Lisboa?

«De quem pode ser então?

«Antónia notou com timidez:

«Da mana das senhoras, talvez... «Da Anica-disse D. Quitéria com estupefacção.

<«<Esta admiração explica-se, sabendo-se que há muitos anos as irmãs da província não se correspondiam com a mana da côrte.

((— Pois na verdade será da mana Anica ? Lê lá, Quitéria!

«Leia, mana Genoveva, leia!

«- - Não. Lê tu. E senão... deixa estar. O Valentim lê, não lê?

Mas... quem sabe... que negócios...

- observou o interpelado.

Connosco não há segredos. E demais, se os houvesse, era a um sacerdote que os confiávamos.

<< - Leia, Valentim, leia!...

«Valentim cedeu e abriu a carta.

«No fim da página lia-se a assinatura de João Soares de Carvalho.

« Ai, é do mano João? Acaso a Anica estará doente? Leia, leia!...

«Valentim leu:

«Estimadíssimas manas.

«Desejo-lhes saúde e felicidades. Há muito que não recebo notícias suas e espero que não sejam más as primeiras que obtiver.

«Escrevo-lhes para lhes pedir um obséquio e ouso confiar que serei atendido pelas manas, não obstante não lho merecer. Sua mana e minha mulher acha-se presentemente algum tanto adoentada, a ponto de me causar receios; os médicos votam por ares de campo e ela lembrou-se da casa onde passou grande parte da sua vida e na qual deixou pessoas por muitos respeitos dignas do amor que ela sempre lhes tributou. Se as manas virem que não há incon

veniente em nos receber aí por algum tempo, peço-lhes mo queiram participar e por isso lhe ficará muito obrigado aquele que já se confessa

«Seu mano e muito atencioso criado,

Lisboa, 17 de Julho de 1852.

João Soares de Carvalho.»

«A leitura terminada, houve um solene silêncio na assemblea. Nos hábitos pacíficos e monòtonamente uniformes das senhoras de Alvapenha esta carta produziu o efeito de uma completa subversão.

«Por algum tempo se conservaram mudas, por não saberem o que haviam de dizer ou de pensar de tudo aquilo,

«D. Genoveva mantinha-se na mesma atitude de religiosa atenção com que escutara a leitura, emquanto os dedos polegares descreviam maquinalmente, em volta um do outro, círculos intermináveis.

«D. Quitéria, com a bôca semiaberta, os olhos espantados, o queixo apoiado sôbre a mão direita, não se mostrava em menor grau de abstracção.

«Antónia, cujos olhos oscilavam de uma para a outra, parecia ansiosa por escutar a resposta.

«D. Genoveva foi a primeira que interrompeu o silêncio, mas não ainda para decidir coisa nenhuma. Voltando-se para Valentim, cujo pensamento se diria muito longe dali, disse:

«-Ora faz favor de tornar a ler. Tenha paciência.

«A importância desta medida era contestável; mas passou sem oposição.

«Valentim obedeceu.

«As coisas ameaçavam permanecer em statu quo, como...' outras muitas coisas.

«D. Quitéria desta vez foi mais além que sua irmã.

-))

Não tem que ver, mana Genoveva; que venham, que venham, coitados.

«― Pois, porque não?--respondeu esta, como se achasse muito natural o que ainda agora a deixara tôda perplexa.- É dizer-lhe que sim.

« - Mas...

balbuciou Antónia.

«A observação não foi admitida.

«Mas...disse D. Quitéria-não temos senão que escrever-lhes e preparar-lhes os quartos. Êles trarão a pequena ?- observou D.

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Genoveva.

<- Pois haviam de deixá-la, mana Genoveva? «E a coisa ficou discutida.

«Valentim pôde emfim retirar-se, deixando aquela boa gente tôda atrapalhada com a repentina nova da chegada dos seus próximos parentes da Capital.

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