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V

ORIGENS DO ROMANCE
«A MORGADINHA DOS CA-

NAVIAIS »

II

N

estudo do romance A Morgadinha. seguiremos ainda, por mais algum tempo, as passagens do manuscrito

que vimos examinando. Apreciá-las minuciosamente é o dever de quem se propõe. estudar a maneira como Júlio Denis levava a têrmo a urdidura dos seus romances e como dos apontamentos primitivos fazia sair a forma definitiva da obra.

Tôda a documentação referente aos outros romances, com excepção do segundo volume dos Fidalgos, que existe com emendas, mas já na última forma, nada mais encontramos que

possa servir de base a um estudo similar ao que vimos fazendo.

Profundar êstes elementos é possivelmente determinar a maneira como Júlio Denis elabo

rou todos os seus romances. Nas Pupilas, sabemos nós, por confissão do autor, seguiu um processo parecido:

«Principiei a escrever as Pupilas em Ovar (1863), diz Júlio Denis (1), durante os meses de Julho a Agosto. Terminei-as no Pôrto em Setembro ou Outubro. Ficaram-me na gavêta até ao ano de 1866, em que résolvi publicá-las. Alterei bastante o romance e ampliei-o introduzindo-lhe personagens e capítulos novos. Publicou-se em 1866 de Março a Julho (2). Publicou-se em volume em Outubro de 1867. O primeiro exemplar brochado em 20 de Outubro» (3).

Que pena não se ter encontrado o manuscrito do primitivo romance tal como saíu na sua primitiva fase vareira!..

Que interessantes notas interpretativas do

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. I, pág. 7.

(2) Publicadas no Jornal do Pôrto, em folhetins.

(3) Esta nota, publicada nos Inéditos, e que vimos num dos seus livros de apontamentos, foi a única que encontramos referente às Pupilas.

modo de ser artístico de Júlio Denis nos não daria! Que de elementos nos forneceria para a exacta identificação das suas personagens!

Mas voltemos ao manuscrito em questão. Em seguida à scena da carta, preocupa-se Júlio Denis em delinear a figura de Valentim, surpreendendo-o nos passeios ao cemitério da aldeia que, pela descrição, deve ser o de Ovar, no seu carácter triste e meditativo, no combate contra um íntimo desgôsto que êle disfarçava em placidez e em sorrisos complacentes.

Procura o isolamento, diz o romancista, para sondar a sua consciência. Vivia na agitação do dilema terrível: «Num momento sentia o coração a chamá-lo ao mundo; noutro a consciência a apontar-lhe o caminho do altar». Noutra passagem explana mais a tese:

«É a consciência a desconfiar ainda de si; é a imaginação ainda a não poder dizer de todo adeus a algumas risonhas ficções que a acalentavam em sonhos. Triste a juventude para a qual êstes sonhos são quási um crime!

«Quando o pensamento tem de evitar estas imagens que volteiam em tôrno dèle como em enfeitiçados círculos, e os olhos ávidos de luz têm de se fechar à vista dêsses deslumbrantes países que a fantasia oferece; triste da juventude que não consegue o descanso que procura, senão após a extenuação que produz a luta».

É a mesma doutrina que Júlio Denis defende a propósito de Augusto, no romance definitivo. Somente nos primeiros apontamentos, donde êle depois havia de sair, podadas as imperfeições e consertada a acção e movimento entre as suas personagens, o problema apresenta-se numa fase mais avançada e, conseqüentemente, a revolta contra o celibato forçado é ali mais marcada do que na obra definitiva (1).

Mas deixemos êste incidente, a que já nos referimos, para apreciar outras passagens do curioso inédito.

A descrição da azáfama que ia pela casa de Alvapenha em arranjos e limpezas, não passou também à Morgadinha dos Canaviais. Apenas uma ou outra passagem foi aproveitada.

Arrumada a casa, foi mostrada a Valentim, com referências históricas a propósito dos diversos objectos, agora saídos dos gavetões, para ornamento das salas:

«--Êstes castiçais de prata,- dizia D. Quitéria, comprou-os o pai, - não se lembra, mana Genoveva? no dia do ano bom de 1755, no ano do terramoto, por sinal. Custaram-lhe 24 500 réis.>>

(1) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., pág. 87 e seguintes.

Lembra-nos esta passagem aqueles dois castiçais de prata, muito brilhantes, que repousavam ao lado do S. João Baptista da redoma, em casa da sr.a Morgada e cuja descrição atrás trasladamos. Do primeiro manuscrito algumas reminiscências, vieram até êste, que parece ser a sua segunda forma. Mais tarde devia Júlio Denis aproveitar alguma coisa de um

e outro.

Em seguida, descreve uma reunião dos notáveis da terra, na taberna do José da Fábrica, quási idêntica à scena que, na Morgadinha, decorre na locanda de Damião Canada. Lá comparecia Bento Crispim-o Bento Pertunhas do romance que era mestre-escola, em vez de ser professor de latim, e que assumia, aos sábados, a importante função de barbeiro e, aos domingos e dias de festa, a de sacristão, profissões que Júlio Denis distribuiu depois por outros, para honra e lustre do professorado primário dessa época. Já tinha uma certa «facúndia oratória que lhe valia créditos no lugar» e o seu discurso era, naquela altura, escutado por lavradores abastados e um ou outro morgado das imediações, dentre os quais veio a surgir, na obra definitiva, o influente João das Perdizes, ainda ali no anonimato. Não passa ainda de um morgado que fala de eleições. Discutindo a razão da vinda de João Soares, descambam para a política e a scena

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