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carácter que Júlio Denis descreve em Madalena. Júlio Denis encarnava-se, naquele momento, na atitude decidida, corajosa e nobilitante da Morgadinha. Não era arriscar a vida pela vida de sua mãe; era, para èle, mais do que isso arriscá-la pela sua memória representada no túmulo que queria fazer respeitar do vandalismo daquela multidão desvairada.

Se quiséssemos coligir tôdas as impressões que o romancista confiou às suas novelas, aos seus contos e aos seus romances sobre a orfandade, tôdas as sensações que nos comunica dêsse doloroso estado de alma através das personagens que nos mostra órfãs de mãe, todo o lirismo com que as aureola, teriamos de fazer bastantes repetições, mas mostrariamos, em toda a evidência, a intensidade de uma saudade que podemos classificar de excessiva.

Se Júlio Denis tivesse ligado os seus destinos à vida de uma mulher, não seria esta a nota principal, podemos mesmo dizer, dominanteporque o é! dos seus romances.

E porque não casou Júlio Denis?

Através da sua obra palpita esta aspiração a cada momento: nos seus poemas, nos seus contos e especialmente nos seus romances onde êle se representa apaixonado e noivo. O epílogo é sempre o casamento!

Mostra assim, e constantemente, a aspiração

máxima da sua vida. E, contudo, não chegou a decidir-se. Foi a tuberculose que o deteve.

Tôdas as suas inclinações amorosas não passaram, por isso, de devaneios a que não quis dar consistência por não poderem ter finalidade. Como rapaz comprazia-se em fazer madrigais às raparigas que o interessavam; mas, atrás do entusiasmo de momento, vinha o raciocínio. E quantas vezes pôde dominar-se! A doença era o espectro que a cada instante se levantava diante dos olhos, ávidos de esperanças!

Lembra-nos a passagem de uma carta escrita do Funchal a Custódio Passos, quando começavam a desfolhar-se as últimas ilusões da desejada cura, em que o romancista se refere ao casamento de um dos seus amigos:

«O Pôrto está eminentemente casamenteiro. Neste momento chegaram-me muitas novas matrimoniais. O José Carlos mandou-me dois cartões a dar parte do seu casamento. Meu primo noticiava-me que o dêle se efectuaria a 5 de Abril e, no mesmo dia, tinha lugar o do Albuquerque!

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«Caiu pois aquele colosso que eu julgava inatacável! Baqueou uma das mais seguras colunas do celibato! A nossa tripeça descambou por o pé mais sólido! Afinal ninguém pode reputar-se imune. Que destino nos reservarão os fados!

«Eu, quando penso nas soluções que vão dando a êste grande problema da vida os nossos amigos, perco-me em longas meditações.»

Não será imprudente julgar que nessas meditações se estabelecia a luta íntima entre o desejo de constituir família, e a repulsa que lhe devia causar a idea de se ver ámanhã em inteiro descalabro orgânico, a braços com a desgraça dos seus, sôbre que viria a pesar a hereditariedade mórbida que o deixou órfão aos 5 anos de idade e lhe arrebatou, no mesmo ano, dois irmãos! Como médico, deviam torturá-lo êsses trágicos pesadêlos, que contrastavam com as suas mais íntimas ambições.

Foi como resultado de tudo isto que Júlio Denis se mostrou, talvez, um pouco leviano nos

seus amores.

Quere-nos, porém, parecer que, mesmo nesse campo, ficou um pouco aquém do que é vulgar em gente moça de agora e até, por vezes, em gente de cabelos brancos... Diga-se isto em abôno da sua memória.

Êle retrata-se como volúvel em Daniel, em Carlos, em Henrique de Souzelas. Tirou de alguns devaneios amorosos que, por vezes, o entusiasmaram, estudos para os seus romances. Pecados da mocidade que, ainda assim, lhe deixarem remorsos pela vida fora, como mostraremos. Esse aspecto sentimental do roman

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cista, essa fugacidade na objectivação afectiva, foram a conseqüência, ao menos numa certa fase da sua vida, da incerteza da saúde, que se agitava entre esperanças desmedidas de cura e horas negras do mais acentuado desalento.

O estudo que, dentro em breve, faremos dos seus romances, que é a história dos seus amores, mostra bem quanto era comedido êsse defeito, que êle teima, por vezes, em exagerar. Pôsto isto, apreciemos outros aspectos da sua vida íntima.

Seria Júlio Denis um crente?

Que foi educado no catolicismo não pode haver dúvida, e que, durante algum tempo, foi um praticante, parece deduzir-se de algumas passagens das suas cartas e das suas obras.

«É à pressa que lhe escrevo hoje, pois ouço já tocar o sino para a missa e não quero faltar a êsse dever católico que quási todos os domingos observo».

Assim escreve Júlio Denis, de Ovar, em 9 de Agosto de 1863, a sua madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho. ¿Fá-lo para comprazer com a que foi a melhor companheira da sua adolescência, ou é a confissão verdadeira da sua maneira de sentir em matéria religiosa? Em Dezembro de 1869 escreve a Custódio

Passos estas palavras, que denunciam algumas hesitações do seu espírito:

«Pedes-me desculpa de haver talvez com as tuas palavras ferido as minhas crenças. Não feriste.

«Eu, meu Passos, não quero blasonar de scéptico, porque creio até que o não sou. É certo, porém, que não possuo tais e tão melindrosas crenças que as tuas palavras pudessem assustar. Tenho, às vezes, sondando-me com o firme intento de me conhecer, chegado quási a acreditar que estou vivendo em uma santa ilusão, supondo-me menos scéptico do que outros que o são mais manifestamente. Desvio, porém, sempre que posso, o espírito destas sondagens, porque prefiro iludir-me e ignorar o que lá vai no fundo. Daí vem o não me chocarem as expressões de desalento ou descrença dos outros, e muito menos quando tão fortes motivos há para elas, como os que tens».

Desta passagem deduz-se, ao lado de uma certa incerteza, que êle pretende afastar do seu pensamento, que Custódio Passos o considerava um crente. Nem doutra maneira se compreende que pedisse desculpa de quaisquer palavras que lhe escreveu como podendo ferir os seus sentimentos religiosos.

Tinham decorrido seis anos entre a carta

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