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Denis «em que a idea de Valentim seguia a sua malancólica propensão, que Laura, tentando arrebatá-lo daquele desconfôrto em que o via mergulhado, lhe disse sorrindo:

((- Vamos, senhor Valentim, eu e meu pai já explanámos as nossas predilecções literárias; queremos saber as suas. Recite-nos alguma coisa. Não lhe ocorre nada?

«Valentim ergueu a cabeça a estas palavras

e sorriu.

«Havia naquele sorriso uma expressão de amargura sensível aos olhos menos perspicazes. Laura observou-o atentamente.

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- Agora mesmo me estava ocorrendo>>> disse Valentim com o tom melancólico que lhe era habitual- «umas estâncias irregulares cujo autor ignoro. Quero-lhes pelo assunto.

<<-Qual é ?»--preguntou Laura com interesse. E uma elegia sôbre o túmulo de um

padre.

Ah! disse Laura fixando os seus olhares sôbre o rosto do mancebo. «Recite, re

cite...

<«<Valentim correu a mão pela fronte, que deixou ficar encostada, emquanto que, com a voz vagarosa e repassada de tristeza, o olhar perdido no espaço, recitou as singelas quadras que, na véspera, lhe haviam sido ditadas pelo coração junto ao túmulo onde tantas vezes parou, a meditar no seu destino.

O BOM REITOR

«Sabem a história triste

Do bom Reitor?

Mísero! Tôda a vida

Levou com dor.

«Fêz quanto bem podia...
Mas, afinal,

Morre, e na pobre campa,
Nem um sinal!

«Nem uma cruz, ao menos,
Se ergue do chão!
Geme-lhe só no túmulo

A viração.

«Vêdes além, no vale (1),

Junto ao rosal,

Flores que há desfolhado
O vendaval?

(1) Esta poesia foi publicada por Júlio Denis no Jornal do Porto de 1 de Agosto de 1864 (vol. I, cap. XI). Intercalou-a na primeira carta a Cecília sôbre Impressões do campo, com o pseudónimo de Diana de Aveleda. Faremos, em breve, larga referência a essa carta.

Por agora notaremos a variante dêste verso.

Vêdes além... na relva.

Quer uma, quer outra, se adaptam ao scenário do

velho cemitério de Ovar.

«Cobrem-lhe a lousa fria.

A criação

Só lhe venera as cinzas
Co'ignota mão (1).

«Pobres que tanto amava

Nunca, ao passar,

Curvam a fronte e ajoelham

Para rezar (2).

«Nunca, ao nascer do dia (3).

O lavrador

Passa e lamenta a sorte

Do bom Reitor.

«Nem, do cair da tarde,
Á ténue luz,

(1) Na carta a Cecília escreveu:

«Paga-lhe assim a dívida

De compaixão.»>

(2) Esta quadra aparece assim modificada no Jornal do Porto:

«Pobres que amava tanto

Nunca, ao passar,

Choram, curvando a fronte,

Para rezar.»

(3) Júlio Denís alterou para:

Nunca, ao romper do dia...

Serve, de triste lâmpada,
Humilde cruz (1).

«Há nesta vida amarga
Sortes assim...
Vive-se num martírio,
Morre-se emfim,

(1) Esta quadra é substituida por estas:

>>As criancinhas nuas,

Que estremeceu,

Já nem sequer se lembram

Do nome seu.

«No salgueiral vizinho,

Ao pôr do sol,
Vai-lhe carpir saudades
O rouxinol!

«Lágrimas... pobre campa!

Ai, não as tem!

Só de manhã o orvalho

Rociá-la vem.

«Da solitária lua

A triste luz,

Grava-lhe, em vagas sombras,
Estranha cruz.

«E êle repousa, dorme...

Vive no céu!

Dorme esquecido e humilde
Como viveu.>>

Sem que memória fique

Para dizer

A's gerações futuras

Nosso sofrer» (1).

«E calou-se. Todos pareciam respeitar aquele silêncio e fitavam em Valentim olhares de solícito interêsse.

«Laura foi quem primeiro rompeu êste prolongado silêncio.

<«<- E o resto?» disse ela, não desviando a vista de Valentim.

«Êste estremeceu como se uma voz o despertasse dum sonho. Ergueu a cabeça e, còrando levemente, respondeu com aparente indiferença: «-O resto é curto, é uma súplica apenas». E acrescentou:

«Quem me escutar, se, um dia,

Ao vale fôr,

Reze sentida prece

Ao bom Reitor» (2).

(1) Êstes dois versos aparecem ligeiramente alterados na edição definitiva:

«A's gerações que passam

Nosso viver.>>

(2) É esta a última forma adoptada pelo autor:

«Quem me escutar, se, um dia,

Ao prado fôr,

Ore pelo descanso

Do bom Reitor.>>

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