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dirigida a sua madrinha e aquela que agora escrevia ao seu amigo. Mas já em 1863, quando veraneava em Ovar, era médico. Não se pode, por isso, dizer que fôsse o vento agreste da sciência que fizesse estiolar os princípios religiosos em que fôra educado.

Quer durante o seu período escolar, quer nos primeiros tempos que se lhe seguiram, nunca deu demonstrações de descrente. Pelo contrário, quando discutiu na sua dissertação se as diversas raças humanas derivam, ou não, do mesmo par, inclinou-se para a unidade da espécie humana, o que está de acordo com o Génesis, que a todos os mortais da nossa espécie. deu os remotos avós Adão e Eva.

Mas, mesmo nesse período, não tolerou fanatismos. Antes os vergastou sem complacências. São mesmo as únicas páginas de crítica azêda que encontramos nas Pupilas e na Morgadinha.Os missionários são ali apreciados com a implacável justiça de um espírito elevado, são e justo.

Descrevendo as beatas de Ovar, de que, na nossa juventude, ainda conhecemos, por aquelas paragens, exemplares como os que se encontram fotografados nas Pupilas, escreve Júlio Denis:

«Era emfim um dêsses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias: - mulheres cuja vida se

passa em devoções contínuas, em novenas e vias-sacras e em perene confissão: obra dos gordos missionários que deixam a outros o cuidado de desbravar a gentilidade das nossas possessões, para andar na tarefa mais cómoda de tolher o trabalho e a actividade na casa do lavrador.

«Imbuindo o espírito das mulheres de preceitos de devoção absurda, afastam-nas do berço dos filhos, da cabeceira do marido enfêrmo, do lar doméstico, para as trazer ajoelhadas pelos confessionários e sacristias; com uma brava eloqüência, perigosa para quem não tiver o senso preciso para a achar ridícula, incutem-lhes falsas doutrinas, desmentidas e condenadas em cada página do Evangelho, tão severo sempre contra fariseus e hipócritas.

«Em uma localidade, não muito distante do Pôrto (1), ainda há pouco um dêsses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente a moral dos povos, prègou do púlpito que a salvação de um homem casado era tão difícil como o aparecimento de um corvo branco.

«É triste e desconsolador o aspecto da terra onde esta praga farisáica tem feito os maiores estragos. A alegria do povo, êsse reflexo da alegria das mulheres, porque das mães se reflecte

(1) Ovar?

nos filhos, das esposas nos maridos, das raparigas nos amantes, desaparece pouco a pouco.» (1)

Na Morgadinha, as críticas não são menos acerbas nem menos repetidas. E tanto que acabam pelo castigo do Cancela, aplicado ao missionário que lhe roubou a afeição da filha:

"A mão do Cancela caíu em parte sôbre o pescoço do padre, e com tal fôrça que êste foi constrangido a ajoelhar.

«— Anda, meu impostor do inferno!

« E uma forte sacudidela o impeliu para diante e restituiu de novo à primeira posição. O chapéu rolou a alguns passos de distância.

« Anda, meu encomendador de almas!

<< Nova sacudidela, seguida de iguais resultados; e os óculos seguiram o caminho do chapéu.

«<--Anda, meu caluniador de Deus! » (2).

Éste final é o epílogo dos comentários do autor à obra dissolvente dêstes fanáticos, cuja acção êle sintetiza, mais uma vez, nesta frase:

2

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 236.

(2) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., vol. II, pág. 75.

<« horror ao escândalo, eis o que caracteriza esta moral de Tartufo» (1).

Ao recordar estas passagens, desconhece-se Júlio Denis pela violência da linguagem; embora ela faça ressaltar a personalidade moral do romancista.

Muitas vezes preguntamos a razão determinante desta aspérrima crítica. ¿Seria apenas decidido pelos seus naturais sentimentos de justiça ? Talvez. Mas quere-nos parecer que deve ter influido em Júlio Denis, neste acesso de acrimónia, uma circunstância que passamos a relatar. As Pupilas e a Morgadinha foram romances começados a trabalhar em Ovar.

Como demonstraremos, Júlio Denis prendeu-se, em devaneio amoroso, à Guida das Pupilas, uma das filhas de Tomé Simões, o recebedor, em casa de quem passava muitas horas a conversar. A Guida era a amiga mais íntima de sua prima D. Maria Zagalo Gomes Coelho, com quem convivia a todos os momentos, pois era hóspede da mãe desta, D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, sua tia.

Nas conversas em casa do recebedor Tomé Simões, e continuadas em casa de sua tia e de

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 237.

sua prima, havia de vir à balha a história trágica da loucura de uma irmã de Guida, ao tempo ainda viva, mas sequestrada ao convívio familiar, que se atribuia à acção maléfica dos missionários,

Júlio Denis, como homem bom e de princípios inabaláveis de justiça, devia ser naturalmente inimigo dos fanatizadores daquele meio. Mas ousamos acrescentar que a influência das duas famílias e o caso da loucura da irmã de Guida devem ter forçado involuntàriamente a mão do romancista a sair da sua compostura habitual e castigar os tais missionários com maior azedume. E, pelo menos, uma suposição bastante plausível.

Devemos contudo acentuar que Júlio Denis detestou. sempre a hipocrisia. São bem significativas estas palavras que recortamos da Família inglesa, escrita antes das Pupilas:

«Acabara de facto o carnaval. Expirara essa época votada à folia e à loucura sem rebuços e abria-se agora a da penitência e dos sermões.

«Em qual das duas há mais verdades, mascaradas sob falsas aparências, deixo aos moralistas decidir.»

Só as crenças na sua pureza, no que elas têm de mais elevado, prendiam o seu espírito de eleição.

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