«Sua mãe fitava os olhos nela e sorria-se vendo aquele enleio, como se compreendesse a causa que o ocasionava. «Cedo a voz argentina de Adelaide, interrompendo o silêncio da noite, principiou a cantar, em toada popular, a seguinte canção conhecida nos arredores: «Volta andorinha aos países Dispersando os nevoeiros Em que o inverno os envolveu...» O manuscrito acaba aqui. Apenas mais dois versos da segunda oitava, que não vale a pena transcrever, mostra que êle está incompleto. Esta oitava recorda um pouco uma quadra da poesia as Andorinhas, a que faremos, num dos próximos capítulos, mais larga referência: «Voltai, que de novo serão florescentes Talvez nascesse neste incompleto poema a idea inicial da interessante poesia que foi escrita nessa época, como demonstraremos. Mas deixemos, por agora, êsse assunto. Interessa-nos mais, neste momento, averiguar qual era o estado de alma de Adelaide, que parece ter cantado na véspera com mais entusiasmo a sua canção predilecta. Quem sabe se seria para que mais alguém a ouvisse, e ousamos lembrar que êsse alguém fôsse aquêle rapaz, que passava as noites a tocar e a cantar e que escrevia horas inteiras, hóspede da Quinta dos Cedros e de quem D. Luísa tirou informações ao Torcato. A ser verdadeira a presunção, vê-se que Júlio Denis ligava neste manuscrito os destinos desta antecessora de Madalena, não a Valentim, mas aos dêsse rapaz que, pela descrição, lembra bastante Henrique de Souzelas. Nada podemos afirmar com segurança, pois careciamos de mais algumas páginas para chegar a uma conclusão positiva. De resto essa dúvida parece ter acompanhado o próprio romancista durante uma certa fase da elaboração do romance definitivo. Apreciando as afinidades de educação e de espírito, pensa-se a princípio, como mais lógica, na ligação de Henrique de Souzelas à Morgadinha. Foi preciso inventar a providencial queda do cavalo e a inabalável persistência de Madalena em o afastar, para que viesse a realizar-se o seu casamento com Cristina. A mais de uma jovem leitora da Morgadinha dos Canaviais ouvimos dizer que era mais natural o casamento de Madalena com Henrique de Souzelas do que com Augusto. Quási nos manifestaram pena de que assim não sucedesse. -Pareciam talhados um para o outro-comentou uma destas leitoras. E julgamos que estão na lógica das premissas inicialmente apresentadas no romance. VIII «HENRIQUE DE SOUZELAS » E JÚLIO DENIS OUTRAS PERSONAGENS DA «MORGADINHA» J KULIO Denis, respondendo a uma carta de João Pedro Basto, em que éste lhe faz reflexões a respeito do ca rácter de Henrique de Souzelas, a seu ver, tomado pelo romancista como tipo dos rapazes de Lisboa, diz que de maneira alguma podia resignar-se a deixar pesar sôbre os seus ombros tão antipática responsabilidade. Não foi sua intenção caracterizar os rapazes da Capital no tipo que descreveu na Morgadinha. Nem isso se pode inferir de o ter feito nascer em Lisboa, pois poderia ser de qualquer outra cidade. Em seu entender era absurdo fazê-lo oriundo de uma aldeia, porque a vida das cidades é que gera êstes tipos, «como gera as tísicas». E acrescenta: Não é novo êste tipo nos meus romances. Os defeitos de Henrique são, atentas as diferenças de temperamento, os de Daniel nas Pupilas, os de Carlos na Família inglesa. «Estes dois era o Pôrto que os tinha estragado. Henrique veio assim de Lisboa». Júlio Denis junta na mesma categoria, e até no mesmo tipo genérico, os principais galas dos seus três primeiros romances. E teve razão para o fazer, porque êles representam, sob diversos aspectos, a sua própria personalidade. Em algumas das suas peças teatrais inéditas, também se fêz representar com características similares. Em Henrique de Souzelas é talvez maior o disfarce do que em qualquer outro, mas, através da obra, patentea-se, por vezes, no seu carácter, na sua mobilidade amorosa, na sua forma galanteadora e até em particularidades da sua vida. Carlos de Whitestonne é órfão de mãe; Henrique de Souzelas também o é. Declara-o a Cristina: «Agora peço-lhe, Cristina, que, já que me fèz antever as delícias do viver de família, não me condene para sempre ao suplício de não as |