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IX

«O CANTO DA SEREIA»

I

M

UITAS vezes procurámos investigar, a propósito das Pupilas do sr. Reitor, a razão porque Júlio Denis não faz nesse romance uma única referência directa ao mar, quando é certo que tôda a acção se passa, não no Minho, como se tem acreditado, mas em Ovar, população essencialmente marítima.

Passando em revista os seus manuscritos inéditos, encontrámos um pequeno romance cuja acção se passa em pleno mar entre a praia do Furadouro, contígua a Ovar, e Espinho, que fica a alguns quilómetros ao norte.

O romancista pensava revê-lo mais tarde, juntar-lhe talvez novos episódios e entregá-lo depois à publicidade. Sendo assim compreende-se que

não quisesse repetir o mesmo scenário e por isso deslocasse para o norte, para o seu predilecto Minho, os dois romances vareiros: a Morgadinha e as Pupilas. O primeiro ainda pôde arrumá-lo em paragens por vezes diversas daquelas onde foi nascido, mas as Pupilas é que não conseguiu desenraïzar da terra de origem, como demonstraremos.

O Canto da Sereia é escrito sem disfarces de scenário. Passa-se na zona marítima de Ovar.

É um episódio da vida de pescadores, excessivamente dramatizado e tanto que sái um pouco da forma vulgar do romancista para nos lembrar, em algumas passagens, as páginas dolorosas e extravagantes de Edgard Poë.

Não só desperta um inesperado interêsse, mas, sobretudo, apresenta uma documentação preciosa, que aproveitaremos. Que extraordinário período de actividade literária foi êsse em que Júlio Denis esteve em Ovar!

Já o mostrámos através dos esboços ali tracejados do romance a Morgadinha. Sôbre as Pupilas falaremos daqui a pouco.

Juntem-se a estas obras as poesias dessa época, algumas das quais podemos hoje datar com precisão. A do Bom Reitor, já publicada, é dêsse tempo; é-o também a Oração do Reitor, que atrás publicámos, página de profunda unção religiosa, e uma das mais belas que Júlio Denis escreveu.

A interessante poesia as Andorinhas vêmo-la pela primeira vez no Canto da Sereia, um pouco diferente especialmente na parte final, que foi depois ligeiramente acrescentada (1). Transcrevêmo-la tal como a encontrámos neste manuscrito :

«Deixai êstes montes de neve coroados,
As selvas despidas e as flores sem côr,
As grossas torrentes e os troncos quebrados
E os vales cobertos de denso vapor.

«E quando, de novo, na verde campina
Violetas e rosas se virem florir,

E a serra inundada de luz matutina
As gélidas vestes de novo despir,

«E quando, de novo, na praia arenosa
A onda mais plácida vier deslisar,
E das laranjeiras de copa frondosa
Cairem as flores no chão do pomar,

«E quando estas nuvens escuras, pesadas,
Quais negras montanhas, que se erguem do sul,
Fugirem dispersas e em flocos rasgadas
Nos plainos imensos dum límpido azul,

«Voltai; nova quadra de amor vos espera.
Das praias distantes para estas parti,
Que a luz que dimana de fúlgida esfera,
Do sol já sem nuvens, às ayes sorri.

(1) As pequenas alterações dão-se nas estâncias que se seguem à quarta quadra.

«Voltai que de novo estarão florescentes
As selvas, os prados, o monte e os vergéis,
Quietas as brizas, as águas dormientes,
Nos lagos tranquilos de novo sereis.

«Só eu, que vos vejo partir, pressurosas,
Buscando outros climas dos bosques além,
Já quando nos prados brotarem as rosas,
Talvez não reviva co'as rosas também.

«Ai, não, não revivo! Bem sinto que o outono
Que as folhas crestadas dispersa no val',
As horas me aponta dum plácido sono,
Do sono da morte no leito final.

«E quando na volta de longas viagens,
Vierdes de novo saudar nossa luz,
Passando, andorinhas, por estas paragens
Da campa onde eu durmo poisai junto à cruz.

«Com brandos gorgeios, com vozes magoadas
Quebrai dos sepulcros a triste mudez.
Co'as sombras dos mortos por vós evocada
Talvez que eu da campa ressurja... talvez.»

Esta poesia é a primeira expansão dolorosa da sua vida agrilhoada ao morbo que o havia de prostrar. Quem sabe se Júlio Denis não repetiu, algumas vezes, as suas últimas quadras como um final de romance em que êle era, verdade, o protagonista!

de

Como Júlio Denis apreciava especialmente a poesia que se canta, por ser, em seu entender, a que melhor se sente, imagina-a neste romance

cantada em italiano e «harmònicamente interpretada pela música de um compositor desconhecido». Dá-a como a tradução da canção que a excêntrica cantora, de que nos ocuparemos daqui a pouco, entoava em pleno mar nas suas bizarras digressões.

Pode, por isso, datar-se de 1863, ano em que o romancista esteve em Ovar.

Também é desta data a Evocação à tempestade, de que adiante falaremos, e ainda algumas mais.

Do interessante romancezinho-O Canto da Sereia-vamos transcrever a maior parte. Nas primeiras páginas descreve Júlio Denis a paisagem do Furadouro, em que o ti' Cabaça, nome regional, conta em linguagem rude e insinuante a história fabulosa de uma sereia que abordara aquelas paragens em tempo de seu avô. O pitoresco do diálogo, a descrição do tipo do marítimo e da vida dos pescadores daquela região, constituem uma preciosa observação, cheia de colorido e de verdade:

- «Metade mulher e metade peixe! Isso pode lá ser! Está a caçoar com a gente o ti' Cabaça. Ora!

- «A caçoar! Na minha idade não se cacoa, rapazes. É verdade o que lhes digo. Assim me Deus salve, como muita vez o ouvi contar a meu pai. Senhor o chame lá! Dizia êle que de

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