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Aonde?

Aqui, da praia. É uma música de anjos que vem das ondas. Uma música como ainda a não ouvi em parte alguma. Não é alegre e divertida, como a das festas e arraiais; nem séria e de devoção, como a que cantam as mulheres na vila à missa-do-dia, ao consagrar da hóstia e do cálice; mas é uma música triste, saüdosa, uma música que me faz chorar. A voz que canta parece de mulher, mas, ao ouví-la, até chego a esquecer-me do lugar em que estou. Sabe? A praia, o mar, as estrelas, o céu, tudo desaparece diante de mim. Parece-me que então só sei viver para ouvir aquela voz no meio do barulho das ondas, que não consegue abafá-la. Procuro, a-pesar da escuridão da noite, descobrir a mulher, se é mulher, eu sei? a fada, talvez o anjo que canta assim, mas nada pude ainda ver. Sinto em mim uma coisa que não sei bem dizer o que é. Queria seguir aquela voz. Tenho sentido desejos de me deitar às ondas para ouvir de mais perto aquele cantar divino. É quási uma tentação tão forte que lhe tenho resistido a custo e não sei se alguma vez...

«O velho pescador segurou com impeto no braço de Pedro, como se naquele momento o visse já próximo a seguir a voz que pèrfidamente o atraía.

Que te livre Deus de tal, rapaz !»

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clamou João Cabaça. «Não te disse eu que corre à sua perdição quem se deixar levar por êsse canto que parece de anjos, mas que é antes de demónios?

«Pedrą prosseguiu :

« -Eu preguntava há muito a mim mesmo que mistério seria aquele. Ao principio julguei que fôsse um engano dos meus ouvidos. Os ventos da noite e o barulho das ondas sôam às vezes de maneira que semelham uma música a distância, mas era diferente o que eu ouvia; os pássaros do mar, gemendo às noites pelas praias, imitam também queixumes e gemidos, mas eu que nasci e tenho vivido a escutá-los, bem lhes sei distinguir o canto; se o tempo é sossegado e o vento favorável, o cantar dos marinheiros de algumas embarcações que pairam ao largo, chega-nos aos ouvidos confuso e quasi sumido; mas a música que eu escutava não era para se confundir com aquela. Era de mulher a voz, mas o estilo do cantar não era o da nossa terra. Nunca até então o tinha eu escutado, não sei até se em alguma parte do mundo se canta assim. Quando há pouco lhe ouvi a história da sereia, foi como se uma luz me alumiasse na escuridão em que estava. É aquele, deve ser aquele o canto de que falavam os antigos pescadores. Nem eu sei que outro possa haver mais para nos confundir e perder. Bem vejo que pode ser peri

gosa para os marinheiros, porque, digo-lhe uma coisa, se aquela voz cantasse do fundo de um abismo, parece-me que poucos se venceriam para, levados por ela, se não precipi

tarem».

O tio Cabaça, diz o romancista, recebeu a confidência com tristeza. Para ele é que não havia dúvidas: era a sereia.

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E que de desgraças ela não traria a tôdas as companhas! E que de desventuras não viriam a caír sôbre o pobre rapaz que êle pressentia já preso daquele «fatal encantamento!»

X

«O CANTO DA SEREIA »

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velho João Cabaça deu a Pedro os seus conselhos. Que era de sereia o canto que êle ouvira não havia dúvida. Era preciso que êle deixasse de passear à noite pela praia para fugir à tentação de a escutar, visto ser mais fácil evitar o perigo do que vencê-lo.

E nesta ordem de ideas procurou convencer o seu companheiro de lidas marítimas a esquecer o que ouvira e dar outro rumo aos seus devaneios.

Pedro não obedeceu.

O canto seduzia-o. Era a atracção do maravilhoso, a que a história do velho pescador veio trazer novos incentivos. Não pôde por isso abandonar as suas digressões nocturnas na es

perança de tornar a ouvir a voz que o seduzia. Vagueava por tôda a praia, pelas horas mortas da noite, ouvidos atentos, os olhos presos à vastidão imprecisa das águas. Demos a palavra a Júlio Denis, que mostra, mais uma vez, nesta descrição, o poder mágico da sua paleta de paisagista:

«A praia estava, emfim, completamente de

serta.

«O vento tinha virado a Oeste. Nuvens cada vez mais negras e grandes como montanhas, levantavam-se do Ocidente, semelhantes a informes monstros marinhos, surgindo do seio das águas. Bandos de aves aquáticas ora baixavam o vôo ligeiro até roçarem com as àsas pela superfície das ondas, ora se erguiam a perderem-se de vista no espaço nebuloso, onde por algum tempo volteavam em curvas complicadas; depois soltando gritos agudos e lastimosos, desciam de novo em parábolas de extensa curvatura, para colherem do Oceano a presa que com o olhar penetrante haviam descoberto da altura em que se libravam.

«Por tôda aquela imensa amplidão de água nem uma vela, nem um pequeno barco sequer; na longa planície de areia que forma esta povoação da costa, eram os palheiros escuros e fechados, as lanchas em sêco ou alguma embarcação, ainda de menor lote, a única di

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