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XI

«O CANTO DA SEREIA»

III

S leitores de-certo me agradecerão que eu siga ainda neste capitulo a ocupar-me do estranho romancezinho de Júlio Denis. Ainda mais algumas transcrições que, não podendo ser longas, serão, contudo, suficientes para deixarem a impressão duma nova facêta do talento do autor das Pupilas.

Por outro lado, nenhum outro romance, como êste, o prende à região vareira; pois, ao contrário do que sucede em tôdas as suas outras produções, não há aqui nem disfarces de scenário, nem sequer paragens inominadas. Júlio Denis conheceu de perto tôda a formosíssima costa que se estende ao sul e, sobretudo, ao norte do Furadouro. Ali conviveu com vários

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pescadores. Na atitude sonhadora de alguns dêsses rudes homens do mar êle divisou a figura de Pedro, tôda sentimento e fantasia, tôda ansiedade e tortura.

Os mais insignificantes pormenores da região são nesta última parte referidos. Dir-se há que êle próprio tentou um dia a fatigante viagem até Espinho!

«Na noite dêsse dia reproduziu-se para Pedro a aparição do mar.

«Foi pela altura dos palheiros, então ainda desertos, de Maceda e Cortegaça (1), que êle a veio encontrar.

«A noite estava tranqüila, o mar serêno. A claridade da lua, apenas velada por um transparente cendal de tenuissima nebrina, permitiu distinguir o vulto da cantora que, recostada à prôa, entoava uma música cheia de entusiasmo e energia, uma espécie de hino patriótico, a cujas palavras ela sabia comunicar todo o fervor do seu ânimo exaltado. Ainda desta vez foi contagioso para o impressionável moço o sentimento que em todo aquele canto se reflectia.

«Assim como na véspera a melancolia do canto lhe havia feito assomar aos olhos lágri

(1) Costa do concelho de Ovar, ao norte de Furadouro.

mas incompreensíveis, agora a energia, o ardor com que as palavras pátria e liberdade eram pronunciadas pela cantora, comunicaram-se ao enlevado mancebo, que experimentava um dêsses voluptuosos estremecimentos e sensações indefiníveis que ressentimos nos movimentos de entusiasmo, que nos transformam, que nos sublimam, elevando-nos acima de nós mesmos e fazendo-nos capazes de superiores concepções e empenhos.

«Ele caminhava na praia como atraído por aquela harmonia sedutora. Ela fugia-lhe já. O barco movia-se em direcção ao norte. Pedro seguia-o, seguia-o com uma velocidade que só The podia vir da alucinação que o dominava. Já mal se percebia o canto, já quási se tornara indistinto o barco donde aquela música partia e Pedro, com o olhar fixo naquele ponto e com os ouvidos atentos à desvanecida harmonia, caminhava ainda, e caminhou sempre, até que um súbito obstáculo lhe tolheu os passos.

«Estava defronte da Barrinha.

«Quem viajasse há anos por esta parte da Província da Beira (1), deve conhecer, por tradição, senão por experiência, o ponto do litoral que recebeu êste nome e onde tantos episódios,

(1) É mais Beira do que Douro a região; contudo é à província do Douro que pertence Ovar.

uns cómicos e outros trágicos, se sucederam, antes que se construisse a ponte que hoje o viajante, ao percorrer a linha férrea, próximo à estação de Esmoriz, descobre desenhando os seus quatro arcos sôbre o fundo esverdeado das águas do Oceano.

«A Barrinha é uma estreita abertura cavada pelo mar na costa de areia, interrompida neste ponto, e por a qual êle se precipita, vaga a vaga, em um pequeno golfo que se estende para o norte e para o sul, separando dois extensos cabos de areia fronteiros um ao outro. Nas marés brandas, e quando o mar é pouco agitado, esta abertura é vadeável e os viandantes, aproveitando o refluxo, quási a pé enxuto a atravessam, tão incólumes como Moisés atravessou as ondas do Mar Vermelho; mas uma hesitação, uma demora pode ser-lhes fatal; se a vaga volta com um pouco mais de violência, envolve o incauto e não poucas vezes o arrasta comsigo.

«Nas marés vivas, porém, e quando as correntes › marítimas são mais fortes, a passagem torna-se impossível, a não ser nos barcos que estacionam no pequeno golfo, e cujas águas nem sempre são plácidas, recebendo a agitação que o Oceano, em completa comunicação com elas, lhes transmite.

«Ora nesta noite era a Barrinha intransitável; ainda então não existia a ponte que hoje

permite fácil passagem em tôda a ocasião, e o mar era abundante.

«E, contudo, Pedro hesitou ainda, como se tentasse lutar com a natureza no obstáculo que ela lhe oferecia. Mas o canto cessara de todo, a vista já não distinguia no mar o menor vestígio do barco; o. alento que animara até ali o pobre vagabundo abandonou-o todo à languidez da sua definhada saúde.

«Em algumas das noites sucessivas, tranquilas como esta, voltaram de novo o barco e a cantora. Pedro procurou-os com o mesmo fervor, escutou-a com o mesmo recolhimento, viu-a afastar-se com a mesma ou mais intensa saudade.

E o pobre rapaz abatia-se a olhos vistos.»>

É tôda a zona norte da praia que Júlio Denis evoca com o colorido que sabe imprimir aos seus descritivos.

Continua a mostrar-nos Pedro, agora ardentemente apaixonado mais pela voz do que pela mulher, mais pelo sonho que sentia ressuscitar em cada nota, do que pela realidade. Nunca conseguira vê-la. E, contudo, o desejo de o conseguir começava a ser a única esperança que poderia mitigar ou atenuar os exageros da sua afectividade mórbida.

João Cabaça vivia taciturno e oprimido, preso às suas crenças e preconceitos, sentindo.

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