Pobre flor, solitária, ignorada, Depois, pede-lhe que escute a voz do amor: «Ai, se um dia escutares, atenta, E, chamando-te à vida os sentidos, Te abrirá os países floridos Que inda envolve um tenuíssimo véu». E segue neste tom. O pároco, escutando estas endeixas, continua o poeta, ficou por algum tempo silencioso e apreensivo. Mas a canção cessou e o velho Reitor segue com a prece: Senhor! Bemdito sejas A sê-lo voltarás... Por aqui terminamos a transcrição da incompleta poesia, uma das mais belas, da sua colec ção. Deve ter sido escrita em Ovar. A canção amorosa, pela maneira como é dirigida, anda em tôrno do vulto lânguido da suave Guida, que Júlio Denis foi sacudir do sono tranquilo da adolescência. Êste poemeto mostra o aspecto religioso de Júlio Denis. Ele queria que as suas crenças tivessem a guiá-las ministros assim: raríssimos espécimes da legião eclesiástica. Poucos, em nossas terras, lhe poderiam hoje servir de modêlo. Dos vivos que conhecemos e nem tão poucos são!-desempenhando encargos paroquiais, apenas um que pastoreia almas numa pequena aldeia do concelho de Ovar podia enfileirar ao lado da sua galeria de «bons Reitores»>! Quem sabe? Foi talvez êsse contraste, que êle havia de encontrar pela vida fora, entre o padre-modêlo que descreve e os muitos que, por certo, conheceu e que, a cada momento, desmentem a doutrina que prègam, que lhe abalou a sua religiosidade. O facto é que as suas crenças foram esmorecendo como flores que se fôssem desfolhando. Em 22 de Maio de 1870 escreve a Custódio Passos: «Uma das coisas que me afinam é a exclamação de certa gente que não concebe que possa viver de certa forma. Ora é boa! Também não concebo os mistérios do catolicismo e cá me vou conformando com êles, segundo posso, isto é, não pensando nisso». (1) A dúvida, já esboçada na citação de pág. 16, torna-se aqui mais nítida. Em 27 do mesmo mês, já entra pelo sarcasmo quando, ao mesmo Passos, escreve estas significativas palavras a propósito da situação Saldanha: «As indulgências de Roma vão chover sôbre nós e o número de Sés, longe de se reduzir, como queria o mação do J. Luciano, vai quadruplicar, para maior glória e esplendor dessa coisa complicada que se chama Igreja Católica, Apostólica, Romana». (2) E por aqui nos ficamos em citações a êste respeito. As crenças de Júlio Denis, mais fortes a princípio do que no declinar da sua saúde, foram sempre elevadas e altruistas. O seu Deus era a síntese sublimada das melhores virtudes, entre as quais ocupa o mais alto lugar a bon (1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 244.1 (2) Idem, ibidem, pág. 246. dade, com que aureolou as almas que povoam os seus romances e foram dedicadas compa- · nheiras das suas lucubrações. No campo da Arte é que as suas crenças eram fundas, definidas e precisas. Numa das Cartas para minha família, escreve Júlio Denis: «¿ Acabou pois a religião da Arte entre nós? «¿ Pois não é a Arte uma religião também ?» (1) Respondemos, como êle, pela afirmativa e acrescentamos: foi esta mesmo a sua verdadeira religião. Não era só a literatura a sua maior paixão -que o prendia. A pintura, a que, por mais de uma vez, faz referências nos seus romances, e especialmente a música, eram Deusas do seu Templo. Citaremos uma passagem interessante da Morgadinha dos Canaviais: «Henrique não resistiu a esboçar ràpidamente o gracioso grupo (a Morgadinha lendo as cartas às raparigas da aldeia) na carteira que tra (1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 76. zia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrêm de pura raça e dando à donzela, pelos trajos com que a desenhou, os ares de uma castelá rodeada dos seus vassalos. «Não lhe bastou o natural do quadro, quis revestí-lo de um figurino de convenção. Perdôe-lhe a arte que julgou servir.» Henrique é, como demonstraremos, a representação, no romance, de Júlio Denis. Esta passagem, porém, representa apenas uma aspiração. Em muitos dos seus manuscritos deixou o romancista alguns desenhos. Não era, positivamente, uma vocação! Não teria habilidade para tanto! A música parece ser, depois da poesia e do romance, a arte preferida. Pressente-se em tôda a sua obra. Nas Pupilas, onde Júlio Denis nos aparece transfigurado em Daniel, canta, para afastar o aborrecimento que o invade, a ária de Genaro na Lucrécia: «Di pescator ignobile Esser figliuol credei.» (1) Na Família inglesa, descreve Júlio Denis (1) Júlio Denis, Pupilas do sr, Reitor, ed. cit., pág. 136. |