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Pobre flor, solitária, ignorada,
Só a estrela do céu te namora,
Só te beija o rócio da aurora
E te fala o subtil rouxinol!

Depois, pede-lhe que escute a voz do amor:

«Ai, se um dia escutares, atenta,
Essa voz, ó violeta da aldeia,
Essa voz que embriaga, que enleja,
Qual suave harmonia do céu,
Nova luz se fará na tua alma...

E, chamando-te à vida os sentidos,

Te abrirá os países floridos

Que inda envolve um tenuíssimo véu».

E segue neste tom.

O pároco, escutando estas endeixas, continua o poeta, ficou por algum tempo silencioso e apreensivo.

Mas a canção cessou e o velho Reitor segue com a prece:

Senhor! Bemdito sejas
Na tua majestade!
Por toda a imensidade
Teu nome escrito jaz!...
E tu, soberba humana,
Lembra-te que és poeira...
E, na hora derradeira,

A sê-lo voltarás...

Por aqui terminamos a transcrição da incompleta poesia, uma das mais belas, da sua colec

ção. Deve ter sido escrita em Ovar. A canção amorosa, pela maneira como é dirigida, anda em tôrno do vulto lânguido da suave Guida, que Júlio Denis foi sacudir do sono tranquilo da adolescência.

Êste poemeto mostra o aspecto religioso de Júlio Denis. Ele queria que as suas crenças tivessem a guiá-las ministros assim: raríssimos espécimes da legião eclesiástica. Poucos, em nossas terras, lhe poderiam hoje servir de modêlo. Dos vivos que conhecemos e nem tão poucos são!-desempenhando encargos paroquiais, apenas um que pastoreia almas numa pequena aldeia do concelho de Ovar podia enfileirar ao lado da sua galeria de «bons Reitores»>!

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Quem sabe? Foi talvez êsse contraste, que êle havia de encontrar pela vida fora, entre o padre-modêlo que descreve e os muitos que, por certo, conheceu e que, a cada momento, desmentem a doutrina que prègam, que lhe abalou a sua religiosidade.

O facto é que as suas crenças foram esmorecendo como flores que se fôssem desfolhando.

Em 22 de Maio de 1870 escreve a Custódio Passos:

«Uma das coisas que me afinam é a exclamação de certa gente que não concebe que possa

viver de certa forma. Ora é boa! Também não concebo os mistérios do catolicismo e cá me vou conformando com êles, segundo posso, isto é, não pensando nisso». (1)

A dúvida, já esboçada na citação de pág. 16, torna-se aqui mais nítida.

Em 27 do mesmo mês, já entra pelo sarcasmo quando, ao mesmo Passos, escreve estas significativas palavras a propósito da situação Saldanha:

«As indulgências de Roma vão chover sôbre nós e o número de Sés, longe de se reduzir, como queria o mação do J. Luciano, vai quadruplicar, para maior glória e esplendor dessa coisa complicada que se chama Igreja Católica, Apostólica, Romana». (2)

E por aqui nos ficamos em citações a êste respeito. As crenças de Júlio Denis, mais fortes a princípio do que no declinar da sua saúde, foram sempre elevadas e altruistas. O seu Deus era a síntese sublimada das melhores virtudes, entre as quais ocupa o mais alto lugar a bon

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 244.1

(2) Idem, ibidem, pág. 246.

dade, com que aureolou as almas que povoam os seus romances e foram dedicadas compa- · nheiras das suas lucubrações.

No campo da Arte é que as suas crenças eram fundas, definidas e precisas.

Numa das Cartas para minha família, escreve Júlio Denis:

«¿ Acabou pois a religião da Arte entre nós? «¿ Pois não é a Arte uma religião também ?» (1)

Respondemos, como êle, pela afirmativa e acrescentamos: foi esta mesmo a sua verdadeira religião.

Não era só a literatura a sua maior paixão -que o prendia. A pintura, a que, por mais de uma vez, faz referências nos seus romances, e especialmente a música, eram Deusas do seu Templo. Citaremos uma passagem interessante da Morgadinha dos Canaviais:

«Henrique não resistiu a esboçar ràpidamente o gracioso grupo (a Morgadinha lendo as cartas às raparigas da aldeia) na carteira que tra

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. II, pág. 76.

zia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrêm de pura raça e dando à donzela, pelos trajos com que a desenhou, os ares de uma castelá rodeada dos seus vassalos.

«Não lhe bastou o natural do quadro, quis revestí-lo de um figurino de convenção. Perdôe-lhe a arte que julgou servir.»

Henrique é, como demonstraremos, a representação, no romance, de Júlio Denis. Esta passagem, porém, representa apenas uma aspiração. Em muitos dos seus manuscritos deixou o romancista alguns desenhos. Não era, positivamente, uma vocação! Não teria habilidade para tanto!

A música parece ser, depois da poesia e do romance, a arte preferida. Pressente-se em tôda a sua obra. Nas Pupilas, onde Júlio Denis nos aparece transfigurado em Daniel, canta, para afastar o aborrecimento que o invade, a ária de Genaro na Lucrécia:

«Di pescator ignobile

Esser figliuol credei.» (1)

Na Família inglesa, descreve Júlio Denis

(1) Júlio Denis, Pupilas do sr, Reitor, ed. cit., pág. 136.

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