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«Ainda era vivo o tio André da Murtosa... Que homem tão divertido! Aquilo era uma coisa por maior... pois quando êle de serandeiro às esfolhadas»! (1)

Assim se exprimia o Manuel do Alpendre recordando as esfolhadas de outro tempo.

Ora o tio André da Murtosa evoca a terra da sua proveniência, a Murtosa, importante freguesia do concelho de Estarreja que, por sua vez, confina com a Ria, e que está em constantes relações comerciais com Ovar. Dali devia ter vindo o tio André, que guardou ligado ao seu nome o da sua terra natal.

Outra:

«Olhem que mestra de crianças! — observou uma gorda oleira, que viera comprar uma quarta de sabão» (2).

Há em Ovar uma indústria de olaria, e daí a referência do romancista à profissão da sua gorda personagem.

Outras frases mostram modos de dizer locais

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 235.

(2) Idem, ibid., pág. 240.

ali comummente empregados. Não queremos com isto dizer que não se encontrem noutras regiões, mas, sendo vulgares em Ovar, representam mais um argumento a juntar aos que vimos aduzindo em favor da tese que sustentamos. Recordemos algumas:

«< -Mas o Pedro que disse à saída? «-Não disse nada. Parecia nem dar por a gente. Ia assim a modo de estarrecido» (1).

Esta locução «a modo de estarrecido» é um provincianismo muito usado naquelas paragens e que já encontrámos no Canto da Sereia. E para finalizar:

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<< - Se achas que mereço alguma recompensa, porque ma não dás tu mesmo, Guida?

«<-Eu, meu coração? Que recompensa podes esperar duma pobre ?»>

Esta maneira de dizer, tão bela e expressiva, têmo-la ouvido a miúde na população ribeirinha. Ainda nos recorda a impressão que nos produziu quando a ouvimos, pela primeira vez, no barco da travessia da Bestida para a

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 235.

Torreira, a uma peixeira da Murtosa que acalentava ao seio um filhinho doente:

- Dorme, dorme, meu coração!

Quanto lirismo e quanta intensidade afectiva palpitam nesta frase!

XIII

«DANIEL» E JÚLIO DENIS

J

KÚLIO Denis mostra a sua adolescência em Carlos Whitestone, disfarça-se, como lisboeta neurasténico, em Henrique de Souzelas, e apresenta-se, tal como é, no Daniel das Pupilas. Nem esconde a profissão nem a sua orientação de médico novo, cheio de noções absolutamente desconhecidas do velho cirurgião João Semana, de que falaremos em capítulo especial.

Sigamos, por alguns instantes, a simpática personagem do novo doutor no momento da chegada a casa de seu pai, o honrado José das Dornas, com quem, dentro em breve, entraremos em conhecimento. Diz Júlio Denis:

«O grande acontecimento do dia realizou-se emfim.

«Pelas cinco horas da tarde parava à porta de José das Dornas a mais vigorosa e anafada das suas éguas e dela se desmontava Daniel em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata ao tiracolo, sinal evidente da formatura.completa.»

A jornada que Júlio Denis fêz a cavalo, do Pôrto até Ovar, para casa de sua tia D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, serviu para a descrição que nos dá, na Morgadinha dos Canaviais, a propósito de Henrique de Souzelas.

Aqui aparece-nos a desmontar à porta de seu pai, sem se preocupar com a fadiga da viagem de uns quarenta e cinco quilómetros bem puxados. Ele não veio montado numa anafada égua de José das Dornas, que a não possuia, mas sim numa vigorosa mula do almocreve Silva, do lugar da Ponte Nova, da vila de Ovar (1). Esta informação condiz mais com a descrição da chegada de Henrique de Souzelas, em que o diálogo com o almocreve deve estar de acordo com o modo de sentir do cavaleiro,

(1) Informação do dr. José de Almeida. Esperamos que êste nosso amigo conclua uma monografia regional sôbre as Pupilas e a Morgadinha, que tem entre mãos, e que trará novos subsídios aos admiradores da obra de Júlio Denis.

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