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uma noite no Teatro de S. João com pormenores que mostram bem quanto estava ao corrente do movimento do teatro lírico do Pôrto.

Cantava-se a Lucia. Mr. Richard Whitestone não era assíduo freqüentador da ópera, mas

«Tendo já desesperado de ouvir no teatro do Pôrto música de compositores ingleses, como Haendel, Gray, Arnold, Bishop e outros, cujos nomes a cada momento citava com entusiasmo, resignava-se a afagar sòmente o seu acrisolado patriotismo com ir ao teatro quando se cantavam aquelas óperas cujos libretos eram extraídos de algumas das obras primas da literatura inglesa.

«O Otelo, o Macbeth, os Capuletos, as Prisões de Edimburgo, os Foscaris, o Marino Faliero e outras neste mesmo caso, lutavam vantajosamente com o seu muito amor pelo fogão e traziam a público aquela fisionomia, radiante de contentamento e expressiva de saúde, que o leitor já conhece.

<<Preparava-se de ante mão, nessa tarde, relendo a obra que servia de assunto à ópera, e ia depois com vontade para o teatro.

«Não eram porém Rossini, Verdi, Bellini, Ricci e Donizetti os que o atraíam e enlevavam; era Shakespeare, era Byron, era Walter Scott, cujos vultos lhe parecia estar vendo no palco evocados, por sua vez, pelas mesmas persona

gens que o génio dêles tinha evocado outrora. -A música era o acessório. Os aplausos do público roubava-os Mr. Richard, por patriotismo, aos maestros, para os conferir àqueles seus famosos conterraneos.

«No número das tais óperas contava-se Lucia de Lammermoor. Assunto escossês, tratado por pena escocesa, e das mais admiráveis em desenhar tipos simpáticos e imortais, não era para Mr. Richard resistir-lhe. Havia de ir por fôrça.» (1)

Entre os seus inéditos, encontrámos um manuscrito que nos mostra Júlio Denis sob um novo aspecto: o de informador teatral. Intitula-se: A respeito de Stradella... Principia assim:

«Em vésperas de gozarmos uma nova composição de Flotow, o autor da Marta, mimosa ópera que tanto nos deliciou o ano passado, pensei que faria uma fineza aos leitores è leitoras do Jornal do Pórto contando-lhes singelamente o entrecho da ópera romântica de Friederice, que o maestro alemão escolheu para esta sua nova partitura. Vou por isso dizer-lhes o que sei.

(1) Júlio Denis, I'ma Familia inglesa, ed. cit., pág. 199.

«A acção passa-se em 1600 em Veneza. Esta simples circunstância é suficiente para prevenir o público que não faltarão gôndolas, máscaras, serenatas, punhais e não sei se venenos, porque na soberba rainha do Adriático pelos modos não há festa que valha, onde não entrem êstes ingredientes.» (1)

(1) Frederico Fernando Adolfo de Flotow, compositor alemão (1812-1883), não é dos autores musicais do nosso tempo. Escreveu muitas óperas, sendo a mais notável a Marta, que percorreu todos os teatros da Europa, tendo tido grande sucesso em Paris, onde se estreou em 1858 e mais tarde em S. Carlos e no S. João, do Pôrto. No seu largo repertório figura uma ópera com um motivo português: O escravo de Camões, que foi representada em 1843. Não sabemos se chegou a ser cantada em Portugal.

Alexandro Stradella, a ópera que serviu de tema ao artigo de Júlio Denis, tem por base a lenda que se criou em torno dêste célebre cantor e compositor napolitano (1645-1678). Conta-se, a propósito da sua vida aventurosa, que, um dia, quando uns assassinos o espera-. vam à porta de S. João de Latrão para o matarem, a orquestra rompera dentro do templo, com as primeiras notas de uma das suas célebres oratórias. Comovidos, não tiveram coragem de assassinar quem tais encantos derramava nas suas almás, segundo refere o biógrafo donde extractamos esta nota. Bons assassinos, os dêsse tempo! Dois anos depois, porém, faltando-lhe a orquestra, sempre lhes caíu às mãos.

As suas composições chegaram até nós, sendo entre tôdas célebre a Aria de Chiesa.

Depois segue a descrição do enrêdo da peça, que não ousamos transcrever, a-pesar da leveza e curiosos comentários que o esmaltam. O artigo parece não estar completo.

Esta predilecção pela música de Flotow, e particularmente pela ópera Marta, que, ao tempo, fazia as delícias dos freqüentadores dos líricos da Europa, manifesta-a ainda Júlio Denis num outro inédito, O Canto da Sereia, delicioso romancezinho que, em parte, transcreveremos. Prestar-nos há valiosos subsídios no seguimento deste trabalho.

De versos, preferia Júlio Denis os que se cantam aos que se recitam. A música da palavra queria juntar a que é divinizada pelo canto. E assim é que muitas das suas composições métricas são escritas em versos de sete sílabas, os preferidos nos rimances e xácaras cantadas pelos menestréis portugueses.

Não podemos saber até onde ia a sua cultura musical; mas o que sabemos, pelos seus apontamentos, é que freqüentava, com uma certa assiduïdade, o teatro lírico de S. João. O que deixamos exposto é o bastante para apreciarmos, mais esta facêta do seu complexo temperamento de artista.

Júlio Denis amava as artes em si. Na literatura prendia-o sobretudo a idea, embora não desprezàsse a forma.

Não o seduzia a crítica. Só uma ou outra

vez, e apenas em apontamentos íntimos, respondeu às que dirigiram à sua obra.

Tinha um círculo muito limitado de relações. Os autores e os homens célebres do seu tempo não o interessavam, excepção feita de Herculano e de Garrett.

Camilo e Ramalho Ortigão, por exemplo, que já marcavam no meio literário, não eram pessoas de sua simpatia. Em 10 de Fevereiro de 1869, escreve êle a Custódio Passos:

«Mas vamos ao caso: em meio da conversa anunciou-me êle (1), como uma grande nova, que o Camilo Castelo Branco estava também em Lisboa. Á vista da minha indiferença èle não pôde deixar de preguntar-me se eu não tinha relações com êle. Poucas, foi a minha resposta. Logo depois segunda notícia de polpa: o Ramalho Ortigão morava perto da casa para onde eu ia. A mesma indiferença da minha parte; a mesma pregunta da parte dêle, à qual eu respondi: Algumas. Que pensaria o homem consigo ? » (2)

Com Ramalho Ortigão trocou Júlio Denis

(1) Tomás de Carvalho, que lhe prestou serviços em Lisboa.

(2) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., vol. I, pág. 212.

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