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Daniel diverte-se em Ovar com a Francisca do João da Esquina, resolve conquistar o coração de Clara e acaba por namorar Margarida, a pupila que mais interessava o sr. Reitor. Ora pela maneira por que a descreve não há dúvida de que a insinuante rapariga era D. Ana Soares Barbosa Simões, filha de Tomé Simões de Rèsende, recebedor de décimas no concelho de Ovar. Júlio Denis passava horas à conversa na recebedoria, em que, como dissemos no primeiro capítulo dêste trabalho, se reüniam o dr. João da Silveira, o Cura Dias, o dr. Arala, além de Tomé Simões, e onde êle pôde estudar algumas das personagens do romance.

Este amor que Júlio Denis despertou no coração da atraente aldea, não desapareceu com a ausência do romancista. Perdurou durante anos, e transformou-se mais tarde na saudade que com ela viveu no recato, nunca desvendado, dos seus melhores afectos.

Estamos em crer que, pelo seu lado, o romancista também lhe correspondeu, mas não com a mesma intensidade. Sobretudo foi efémera a duração dêsse afecto. Não foi muito além do tempo em que esteve em Ovar.

Mais tarde teve remorsos; e não os teria se essa afeição não tivesse tido um certo relèvo na sua vida sentimental.

Há na colecção das suas poesias uma fla

grante alusão a êste estado de espírito. Bem merece ficar aqui arquivada, porque é, de facto, a prova da afeição que conseguiu despertar em Margarida, e cuja recordação o compungia tempos depois :

EM HORAS TRISTES

«Ela vivia só naquela aldeia,

Sem ter um coração que a compreendesse.
Passei um dia ali, falei-lhe, amei-a...
Ai! Se êsses tempos esquecer pudesse!

«E julgou-se feliz! Pobre criança!
Era feliz naqueles curtos dias;

E eu deixei-lhe nascer, sem esperança
E sem porvir, aquelas alegrias!

«Ó! Como é sem piedade a juventude!

Como é cruel a idade dos amores!
Desfolhamos as flores da virtude

Como se fossem verdadeiras flores!

«Sopra-se ao coração, que a nós se entrega,
A lavareda de violenta chama,
E ao capricho cruel da paixão cega
Sacrifica-se tudo quanto se ama.

«E eu fi-la entrever em doce enleio
Dum mundo novo as mal sonhadas scenas;

E senti-a còrar e arfar-lhe o seio,
E delirante suspirar apenas!

«Parti, jurando amá-la tôda a vida.
Pude fazer aquele juramento!

Ela ficou chorando-me, iludida,

E eu paguei-lhe a ilusão com o esquecimento.

«Perdido dos prazeres no tumulto,
Levado nessa rápida voragem,
Não mais pensei naquele doce vulto;
Nunca mais entrevi a sua imagem.

«E ela?..... Talvez no coração ferida
Por minha leviandade criminosa,
Vivesse dias de enlutada vida,

Sem ter na terra a sagração de espôsa.

«Ai, memórias cruéis do meu passado,
Como pungentes me ferís agora!
Poupai, poupai-me o coração magoado,
Livrai-me do remorso que o devora.»>

Esta poesia foi escrita muito mais tarde, em 1869, no Funchal. D. Ana Simões deixou vestigios na sua passagem pelo coração do romancista. Nem de outra forma se compreende que pudesse recordá-la seis anos depois!

Júlio Denis ainda escreveu algumas cartas a D. Ana Simões-a Margarida das Pupilas. Mas, passado algum tempo, do amor que lhe dedicou apenas ficou o remorso que, nestes casos, é ainda um sucedâneo próximo dêsse afecto dominador.

XIV

J

«JOÃO SEMANA »

OÃO Semana destaca-se entre tôdas

as personagens de Júlio Denis como a mais real, a mais vivida de tôda a sua imensa galeria.

Júlio Denis, que copiou sempre do natural, nunca levou tão longe a perfeição de escritor realista como na descrição dêsse bondoso cirurgião, cujo nome perpetuou como símbolo do médico de aldeia. Nada teve que alterar; mas nem por isso são menos belas as páginas imorredoiras em que a figura do velho cirurgião perpassa, ora contando anedotas, ora troçando das inovações médicas para que não encontrava aplicação na sua prática clínica, ora elevando a sua arte às alturas de uma religião, sacrificando-se pelos doentes, dando aos pobres o que lhe pagavam os abastados e tendo para

todos, aquelas palavras de confôrto que só os bons sabem dispensar aos desalentados da vida. Ler a história de João Semana — e ela vem completa nas Pupilas-é ler o panegirico de

um santo.

Ás vezes entrava em casa com remorsos: a colheita das visitas não lhe dera o bastante para os pobres. Quantas vezes sua espôsa -- porque o velho cirurgião era casado, embora Júlio Denis afirme o contrário,-lhe não censurou o seu excessivo perdularismo!

-Há de chegar para todos!-objectava. E voltava no dia seguinte para a rude faina da clínica, no decidido propósito de se não emendar.

O João Semana das Pupilas é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira que, ao tempo da estada de Júlio Denis em Ovar, exercia a profissão médica, com grande sucesso, naquela região.

Hoje ninguém o põe em dúvida. Apenas o professor Ricardo Jorge faz bem cabidos reparos à completa identificação. Exprime-se nes-tes precisos termos:

«A fusão do tipo do romance e do tipo real não é, todavia, completa. Quando Gomes Coelho estanceou em Ovar e esteriotipou o clínico que levava a sua alegria salvadora com o remédio e o óbulo à choça dos indigentes, João

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