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Pudemos ainda ver, tal como êle o deixara, o escritório do conceituado prático. Vasculhamos-lhe a livraria, procurando adivinhar as suas predilecções de espírito através dos volumes que enchiam a larga estante que se erguia por detrás da cadeira onde êle se sentava. De um e outro lado empilhavam-se em rimas mais volumes e publicações médicas. Havia de tudo um pouco. Filósofos em que tinha lugar primacial J. Jacques Rousseau. Clássicos, entre os quais avultava a colecção completa das Décadas, de Couto (2.a edição), e outros livros de história pátria. Poesias poucas. Não era o seu género. Lá o diz Júlio Denis a respeito de João Semana.

Não encontrámos na sua biblioteca nenhum exemplar das Pupilas! Tinha desaparecido, pois se o seu biógrafo lho não ofereceu, êle, por certo, o adquiriu. Leu-o e parece que não gostou. E menos gostaria hoje, ao saber que alguém, que venera a sua memória como a de um dos melhores homens da sua terra, ousou esmiuçar-lhe a vida, não o deixando satisfazer a sua modesta ambição de passar silenciosamente, descansando por fim sem receio de o virem discutir e pôr em evidência!

E agora uma nota final.

Nada sabemos de positivo sôbre as crenças do dr. João da Silveira. É provável que fôsse católico, como tôda a gente dêsse tempo, que

se não dava ao cuidado de fazer afirmações em contrário. Parece que não era assiduo frequentador das Igrejas, mas, se embirrava com os frades, não antipatizava com a religião. No clero tinha amigos dedicados, como foi, acima de todos, o Cura Dias; mas detestava os maus padres, a quem não perdoava nas suas cavaqueiras.

Quando a febre amarela, em 1855, no reinado de D. Pedro V, devastou aquela região, o dr. Silveira foi um dos poucos médicos que se não afastaram do seu pôsto (1). Conta o padre Manuel Lírio (2) que naquêle transe de terror êle fizera o voto de alumiar tôdas as noites o retábulo das alminhas das alminhas que existia preso a um velho álamo do lado sul da rua da Graça, onde ainda alguns amigos nossos o conheceram.

Nessa hora, pelo menos, deixou-se dominar pela idea do sobrenatural. Talvez fôsse levado a isso por ver a improficuidade dos processos terapêuticos de então para combater o terrível mal.

É nas grandes crises da humanidade que a

(1) Também se conservou no cumprimento do seu dever o dr. José Damião de Carvalho. Almanaque de Ovar, 1915, pág. 140.

(2) Manuel Lírio, loc. cit., pág. 7.

religiosidade sobe em maré alta. Sirva de exemplo a última guerra!

O dr. João da Silveira não fugiu à regra. Diz-se que o seu voto fôra feito para que os médicos que velassem pelos doentes naquela região não fôssem vítimas do mal. E o caso é que não foram atingidos.

O diligente cirurgião conhecia o velho prolóquio e sabia, por isso, por onde começava a caridade bem entendida...

XV

OUTRAS PERSONAGENS
DAS «PUPILAS »

D

E algumas personagens do romance temos falado no decorrer dêste estudo. Não iremos repetir o que está dito, mas englobaremos neste capítulo tôdas as identificações feitas, e bastantes são elas, fazendo passar diante dos leitores as características dominantes dos tipos do romance e das pessoas que êles retratam.

Mais uma vez falaremos do sr. Reitor. É uma síntese o que nos descreve Júlio Denis. Foi tirado dum exemplar vivo com quem êle privou de perto, o padre Francisco Correia Dias, mais conhecido pelo nome corrente de Cura Dias, alma de eleição, padre exemplar, todo caridade e abnegação, a que a vila de Ovar deveu imensos serviços durante a epidemia de 1855 a 1856.

Num apontamento de Júlio Denis encontrámos, numa lista que intitula de romances completos, êste primitivo título: As Pupilas do senhor padre cura. Depois o autor cortou estas duas últimas palavras e substituiu-as por esta outra: Reitor. Êste apontamento é bem signi

ficativo.

O padre Cura era mestre de latim e de português. As filhas de Tomé Simões, de quem êle era parente, tratavam-no por padrinho. Foram suas discípulas, tendo-se distinguido pela sua aplicação D. Ana Simões, que foi, como sabemos, a Margarida do romance. Com êle alcançou uma instrução acima do vulgar e que transparece através das diversas scenas em que intervém.

Mas o Reitor das Pupilas não é apenas o Cura Dias, embora êle bastasse ao romancista para o compor em todos os seus aspectos. Nos serões da Casa do Largo dos Campos, onde Júlio Denis viveu em convívio constante com sua tia afim D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, devia ter-se falado muito do velho Reitor, já ao tempo falecido, padre João de Sequeira Monterroso e Melo, a que já nos referimos, e que foi o melhor dos párocos, inteligente e culto, que, em tôda a vida, apenas teve um objectivo: o bem dos seus paroquianos necessitados. A êle se deve a criação do Hospital de Ovar; por tôdas aquelas ruelas e casebres

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