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pobres êle espalhou o rendimento da paróquia, resumindo tôdas as suas ambições nessa prática altruista.

Foi a vida dêste Reitor que inspirou a poesia inédita que atrás publicamos - A Oração do Reitor (1), uma das mais belas composições poéticas de Júlio Denis.

A tradição que ficou em Ovar dêste padre Monterroso deve ter concorrido para a formação completa do tipo do Reitor das Pupilas. A sua memória dedicou também Júlio Denis a poesia já publicada- O Bom Reitor-por sinal bem pouco lisonjeira para o povo da vila, que depressa esqueceu êsse grande benemérito.

Julgamos que, além disto, deve o romancista ter sido influenciado pela personagem de Herculano O Pároco da Aldeia como êle aliás confessa na carta que lhe dirigiu e que vem publicada nos Inéditos e Esparsos:

«Nisto há uma espécie de restituïção tam. bém. Êste romance das Pupilas é a realização dum pensamento, filho das impressões que, desde a idade de doze anos, tenho recebido das sucessivas leituras do Pároco da Aldeia. O meu reitor não fêz mais do que seguir, a passo incerto, as fundas pisadas que o inimi

(1) Capítulo V dêste volume.

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tável tipo criado por V. Ex.a deixou na sua passagem.»

O dr. José de Almeida, a quem se deve uma grande parte desta identificação, dá também grande valor a estas influências. Mas tanto êle como nós estamos convencidos de que, para base de estudo, lhe deve ter servido o Cura Dias, a quem, por mais duma vez, fêz alusão e que, como noutro lugar referimos, era aquêle bondoso sacerdote que à volta dos ofícios de defuntos vinha repetir os salmos que ajudára a engrolar na Igreja, mercê da pressa dos colegas, sempre dispostos a comer versículos para apressar o trabalho e não deixar esturrar o jantar. Ele queria, acto contínuo, saldar estas contas espirituais com a alma que tão mal encomendara.

O Cura Dias, que o dr. José de Almeida ainda conheceu, e de quem nos contou interessantes episódios da sua grande bondade, era amigo íntimo de João Semana. Este vencia-o com a sua graça, tendo, a propósito dos incidentes da conversa, a anedota perturbadora e incisiva, de que o padre Cura se não sabia defender, acabando por fazer côro com os que a comentavam, rindo.

A ambos irmanava o mesmo ideal: fazer o bem ocultamente, sem que ninguém o reclamasse, ficando satisfeitos com a sua consciên

cia, pois julgavam apenas um dever o levar a abnegação pelos pobres até o sacrificio.

Este Cura Dias aparece em outra personagem das Pupilas, no Cónego Arouca, o padrinho de Clara, que lhe vale no mercado para comprar a fruta à Margarida. A descrição do Cónego é, no dizer do dr. José de Almeida uma cópia do natural.

Devemos ainda notar que, por vezes, o romancista, esquecendo-se do título de Reitor com que o apresenta, fala do «simples cura de aldeia» (1), o que mais corrobora a hipótese apresentada.

O que não é admissível é a opinião corrente de que o Reitor das Pupilas fôsse tirado de Tomé Simões, pai da Margarida.

A. Dias Simões (2) reedita essa impressão, para o que se funda em uma das cartas de Júlio Denis a Custódio Passos e em que êle diz que Tomé Simões é um grande original.

É

pouco para a identificação.

Além disso, Tomé Simões era viúvo, pai de

(1) Talvez por ter dado ao romance, inicialmente, o título a que atrás nos referimos: · As Pupilas dò sr. padre Cura. Nas paróquias importantes do Norte há, ao lado do pároco, um coadjutor a que costuma chamar-se padre Cura.

(2) A. Dias Simões, loc. cit.

família, e não possuia as qualidades postas em realce em tôrno da personagem do Reitor das Pupilas. De resto, Júlio Denis marca bem o lugar do padre em uma outra carta, que já citámos, para o mesmo Custódio Passos. É de 11 de Maio de 1863. Nela diz o romancista:

«O médico é ainda aqui o antigo médico que se denuncia às primeiras palavras; o merceeiro apresenta todos os caracteres próprios da espécie; o padre é o padre tipo...»

Quere dizer: Júlio Denis esboça aqui três das principais personagens das Pupilas: De João José da da Silveira tira João Semana, do merceeiro António Baptista de Almeida Pereira faz surgir João da Esquina e do padre Cura Dias sai, embora melhorado pelas influências que dissemos, o sr. Reitor.

Nem se compreende que êle fizesse uma excepção para o padre, quando em Ovar também havia o padre tipo, indo buscar um leigo e pai de raparigas que, por sinal, muito particularmente o interessaram.

A respeito dêste interêsse é que não pode haver dúvidas. Júlio Denis prendeu-se de amores por D. Ana Simões, que êle trasladou para o romance com o nome de Margarida.

Por mais de uma vez nos referimos aos amores reais do romancista pela filha de Tomé Si

mões. Já relatámos que esta senhora guardara, até très dias antes de morrer, cartas de Júlio Denis, que se perderam para sempre na fogueira onde ela as mandou lançar. Foi o conhecimento que tivemos dêste facto que nos levou a iniciar o trabalho que hoje damos à estampa. Com as cartas estava aquela prenda que a boa velhinha consentiu que ficasse sendo pertença de sua filha D. Emília e em que a legenda fala pelas cartas que o fogo purificou:

Venceste meu coração

Com subtil arte de amor...

Nem essas cartas preciosos documentos, pois não há no espólio literário do grande romancista uma única carta de amor-podiam ter outro destino! Já o dissemos ao iniciar êste estudo. Seria cruel trazê-las a público. Representavam um amor que, de há muito, entrara numa esfera mais elevada. Era para D. Ana Simões como que uma religião! Na sua alma vivera sempre essa saudade e tanto que, cinquenta anos volvidos, e na hora extrema da vida, não se esqueceu de pedir a sua filha que apagasse os vestígios que ela podia deixar na terra. Esse culto, que uma vida inteira santificara, tinha de morrer com êla, e o fogo do seu lar, da casa onde conhecera Júlio Denis, onde os seus olhares se encon

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