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José das Dornas, que, no romance, figura como pai de Pedro e Daniel, nada lhes era de facto; mas é a cópia fiel de José Gomes da Costa, conhecido em Ovar, onde raros não têm alcunhas, pelo nome de José Travanca, do lugar da Ponte Reada. Era o lavrador da casa da tia do romancista, D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, onde Júlio Denis o conheceu, passando horas com êle a rir e a cavaquear.

José Travanca era jovial e franco. O filho, ainda vivo, referiu ao dr. José de Almeida que, segundo o informara o pai, o romancista o procurava sempre para conversar e que às vezes levava papel e lápis para apontar o que êle dizia.

Cantava e brincava nas festas rústicas, sempre com uma inalterável boa disposição. Por fim ensurdeceu e, um dia, indo cantando adiante de um carro de bois, foi colhido pelo comboio ao atravessar o passo de nível da Ponte Nova, tendo morte instantânea.

Até na morte deu a nota alacre da sua vida, que Júlio Denis descreveu magistralmente nos lances variados em que o fêz intervir com o nome de José das Dornas!

O João da Esquina é o retrato fiel do merceeiro António Baptista de Almeida Pereira, o Dacunha. Era cunhado de D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, tia de Júlio Denis. É a realidade

flagrante. Todos o reconheceram logo que as Pupilas foram lidas em Ovar. E não só o João da Esquina, mas sua mulher, D. Margarida Pereira Zagalo e sua filha D. Maria Baptista de Almeida Zagaló dos Santos, que são, no romance, a sr. Teresa de Jesus e a Francisca, aquela trigueirita a quem Daniel fêz os versos que motivaram a interpelação de seu pai ao José das Dornas.

As relações entre o cunhado e a tia de Júlio Denis, aparentemente corteses, deixavam, no fundo, muito a desejar. Daí uma certa má-vontade, que parecia ser fundamentada, e que se propagou, por contágio de conversas e apreciações, a Júlio Denis, que o tratou com menos carinho.

Mas os que o conheceram não acham exageradas as ligeiras críticas que sôbre êle caem no decorrer da acção.

João da Esquina era doente. Só com dificuldade podia sair da casa. Sofria de varizes e de reumatismo. Júlio Denis receitou-lhe arsénico, mas êle não esteve pelos ajustes. Lá lhe parecia que aquilo era droga para ratos. Contudo nessa época dava-se arsénico aos reumáticos.

Mais tarde prescreveram-no, como reconstituinte, ao próprio Júlio Denis, o que o levou a dizer que estava «finalmente vingado o João da Esquina!»

Voltas que os medicamentos dão!

As outras personagens das Pupilas são secundárias e a algumas delas já fizemos referências bastantes no decurso dêste estudo, tais como ao barbeiro, às beatas, etc., para não devermos insistir.

Mas não concluiremos sem dizer que de todo o elenco das Pupilas ainda resta em Ovar uma das personagens que Júlio Denis viu e estudou. É uma das beatas que conseguiu ouvir, através duma janela próxima, numa conversa que sua prima lhe proporcionou chamando-as à porta da casa e preguntando-lhes pelas coisas em que andavam envolvidas na complicada política de sacristia daqueles temÉ pos. uma velhinha de 85 anos. Rosa Brites, se chama. Muito dada a rezas e práticas divinas, foi bordadora de branco, de grandes recursos, cujos trabalhos chegaram a ser expostos, há anos, com sucesso, em Lisboa. É a última representante da comparsaria das Pupilas e que, por êsse motivo, merece referência especial.

Mas quando não houver nomes de vivos a evocar, nem por isso as Pupilas deixarão de viver na tradição e no scenário vareiro, na alma daquela gente laboriosa, que vê nesse romance uma facêta da sua história, e em que vivem os costumes e até a sentimentalidade local. Por isso, êsse povo, mais do que nenhum outro, o sabe sentir e compreender.

XVI

«OS FIDALGOS DA CASA
MOURISCA »

O chegarmos ao fim da nossa jornada através da obra de Júlio Denis, não podemos deixar de consagrar algumas palavras ao seu último livro Os Fidalgos da Casa Mourisca - escrito nos derradeiros anos da sua vida.

Como romance é um dos melhores do autor: tem acção, tem movimento. Mas entre as obras de Júlio Denis é, a-pesar-de tudo, a menos interessante. Concorrem para isso várias circunstâncias, avultando, como principal, o ser um romance de tese muitas vezes explorada no livro e no teatro: o conflito entre o trabalho e as tradições de família, entre a burguesia e a nobreza.

Além disso, os tipos apresentados são mais ou menos conhecidos, embora alguns desenhados com raro vigor. Tomé da Póvoa e D. Luís,

o velho fidalgo da Casa Mourisca, representam a síntese das duas correntes em oposição no romance. Ambos com qualidades, têm, a dentro das fórmulas em que se orientam, muito de comum com personagens já estudadas por outros autores. Dulcifica-os o espírito subtil de Júlio Denis e tanto que, por vezes, nos parecem inteiramente inéditos, tanta bondade se encontra nos seus propósitos e tanta nobreza nas suas decisões.

Jorge e Maurício têm um certo cunho de originalidade. Berta é uma personagem de romance, à época, e Gabriela não desmancha o conjunto do enrêdo.

Júlio Denis é talvez, neste livro, mais romancista do que em qualquer outro; não se perde em tantos comentários psicológicos, nem se demora em análises tão longas de pessoas e de coisas. Pois êstes pequenos senões, que lhe têm censurado nos outros romances, são para nós a sua melhor qualidade. E tanto que nos determina a dar preferência às Pupilas, à Família inglesa e à Morgadinha.

Os Fidalgos são muito raciocinados: nasceram mais do cérebro do que de coração (1).

(1) Entre os manuscritos de Júlio Denis encontramos um com a data de 1870, subordinado ao título: Subsídios para o romance «Os Fidalgos da Casa Mourisca».

São vários apontamentos tirados do Compêndio de

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