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A sua primeira trilogia é um poema de sentimentos; é a vida do romancista a dilatar-se, a desdobrar-se, patenteando-se com tôdas as suas virtudes e os seus pequenos defeitos.

Nos Fidalgos, Júlio Denis não ousa representar-se. Por vezes parece deambular entre a gravidade de Jorge e a leviandade de Maurício; mas não se fixa, não se demora. As suas psicologias tocam-se, mas não se identificam. Júlio Denis, talvez por lhe merecerem maior simpatia os dois rapazes, filhos do velho fidalgo D. Luís, ainda os apresenta órfãos de mãe. Não quis que essa nota, constante em todos os romances, faltasse na sua última obra. É o único ponto bem marcado de contacto com a sua individualidade. Mas sente-se que já não ousa mostrar-se em público. Doente, começando a sentir o desalento da última fase duma tuberculose pulmonar que avançava dia a dia, cônscio da finalidade que sentia avizinhar-se, faltaram-lhe iniciativas para tal cometimento.

Júlio Denis representa-se sempre como um esbelto rapaz, franzino, mas sàdio; delicado,

Economia rural, de Rebêlo da Silva. As citações trazem as indicações das páginas.

Este trabalho de compilação não foi directamente utilizado pelo autor. Serviu-lhe apenas de elemento de estudo.

mas vigoroso. Até a data infeliz em que começou a delinear os Fidalgos, vivia dessa aspiração. Nela se instalou para se ver em Carlos Whitestone, em Daniel e em Henrique de Souzelas. Neste já aparece neurasténico, mas possuidor de bastante robustez. Em tôdas estas transfigurações não teve que falsear a verdade. Era assim, tal qual se apresentava, que êle julgava vir a ser, quando estivesse restabelecido.

Mas quando escreveu os Fidalgos, tôdas as ilusões tinham desabado. Já não sentia a mocidade que espalha às mãos-cheias pelas personagens em que vive na sua trilogia. Se o fizesse, ou faltaria à verdade, o que ia de encontro ao seu feitio moral, ou teria que mostrar o modêlo tal qual era, o que repugnava ao seu ideal de artista e compungia a sua alma de doente.

O romancista teve o cuidado de excluir da sua obra tudo o que podesse retratar o descalabro do seu organismo enfêrmo. E tanto assim é, tanto arreda do seu espírito o que possa lembrar a sua doença, que nos Fidalgos não há, como dissemos, referências à Medicina, êle que tão pródigo foi em não esquecer a sua profissão nos outros romances!

Há, numa ou noutra passagem dos Fidalgos, alusões directas à sua vida, embora escritas a propósito de bem diferentes personagens. Citemos um exemplo:

«O passado, ressuscitando, perdêra já o prestígio e a poesia, que só como passado tem.

«Ó feiticeiras fadas que nos acompanhais quando por longe andamos, devorados de saüdades, a lembrar-nos da terra em que nascemos, porque tão de-pressa nos abandonais à chegada? Porque dissipais os vapores inebriantes de que rodeáveis aquelas imaginações aos nossos olhos fascinados e nos fazeis ver a realidade como a víamos antes?» (1)

Júlio Denis dividia o seu tempo entre o Funchal e o Pôrto e estas sensações eram, portanto, muito suas conhecidas. Deslocava-as de si para as personagens do romance; mas, mesmo assim, não deixava de registar uma ou outra nota do seu modo de sentir de momento.

Para o estudo psicológico do autor, os Fidalgos são, porém, uma obra fria e incaracterística. Não nos traz subsídios novos, porque êle não vive na scena, não palpita no desenrolar da acção.

Interessante como romance, não nos dá os encantos das suas crónicas aldeas, em que não há teses a defender, mas em que se sente a vida a palpitar de verdade.

(1) Júlio Denis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, 2.a ed., Pôrto, 1872, vol. I, pág. 103.

A sua carreira literária, que alvorece na Família inglesa, que alcança a máxima perfectibilidade nas Pupilas, que se mostra cheia de pujança na Morgadinha, não esmaece nos Fidalgos. Este seu último livro mostra, sob um novo aspecto, a expressão elevada do seu talento de romancista. Perde, porém, em colorido e em originalidade o que ganha em acção e movimento.

Ao encerrarmos este estudo, que há de merecer censuras, mas que é o resultado de um paciente trabalho, ficamos com a convicção de que aqueles que nos lerem terão vontade de voltar a deleitar-se com os livros do romancista que soube, mais do que ninguém, fazer uma obra essencialmente portuguesa.

Até o seu estilo simples e sossegado, sem arrebatamentos nem arrevesamentos de linguagem, há de impor-se aos que andam estonteados com a literatura de hoje, excessivamente rica de forma e irrequieta de conceitos. No meio da agitação em que andamos envolvidos, as páginas dos romances de Júlio Denis, dos seus contos e das suas cartas, continuarão a ser um salutar confôrto para as almas que vivem na ânsia de originalidades, que nem sempre são arte, e de contrastes, que nem sempre conseguem dar a sensação de beleza.

Que as obras de Júlio Denis fiquem sendo

horas tranquilas na torturada vida literária de hoje! Que nelas repousem os que as saibam sentir, como a melhor expressão da alma portuguesa, carinhosa e sentimental, em que a bondade floresce como a mais alta característica da raça!

FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME

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