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Pois não me mexi porque naturalmente não senti vontade de fazê-lo. O Diogo como que estranhou a minha indiferença, porque me preguntou:

-Tu conheces o Saraiva de Carvalho ?

Respondi-lhe que não. Ele não disse nada, mas creio que não pôde conceber um tal grau de indiferentismo».

Este desinteresse pode justificar, em grande parte, as fracas relações que manteve com os escritores a que fizemos alusão. As celebridades não o seduziam e menos ainda as políticas, a quem, por várias vezes, fêz referências pouco lisonjeiras. Não as tomava a sério.

Júlio Denis não tinha, positivamente, vocação para adulador!

A síntese da sua vida afectiva, no mundo das relações, concretizou-a numa frase, a propósito de Byron, na Família inglesa:

«Os instintos da águia são mais altos e heróicos do que os das pombas; mas nós todos queremos as pombas mais perto de casa e não nos consolaria tanto a vizinhança da águia, embora nos excite mais a curiosidade quando, uma ou outra vez, a fitamos».

II

«CARLOS WHITESTONE »
E JÚLIO DENIS

A uma frase do romancista, numa das suas cartas familiares, que deve ser aqui recordada:

«Eu encarno-me nas minhas personagens antes de as desenhar. Suponho-me elas, faço-as pensar o que a mim me parece que pensaria em tal caso, obrigo-as a dizer o que eu diria porventura em identidade de circunstâncias».

Nesta orientação, êle atravessa tôdas as scenas nas frases de todos os interlocutores; mas não se representa em todos êles, visto que são diversos os seus caracteres. A sua intervenção, no sentido que êle próprio nos define, sente-se em tôda a obra, joeirando o diálogo de tudo

o que, fundamentalmente mau, poderia surgir no desenrolar das scenas descritas.

Júlio Denis vive, porém, em algumas das suas personagens com tôdas as suas virtudes e pequenos defeitos. Espírito observador, copiando sempre as personagens do natural, não desprezou o modelo que tinha mais à mão.

Psicólogo arguto, procurou em si matéria para as investigações mais delicadas. Êle surge, por isso, nos seus romances representado em diversas personagens.

Não queremos, com isto, dizer que êle se copiasse inteiramente.

Por vezes, como sucede no encadeamento dos sonhos, substitui-se por um amigo, por um conhecido, por alguém que reüne alguma das qualidades necessárias ao desenvolvimento da scena. Mas, no desenrolar do romance, volta a retomar o papel, pouco tempo antes abandonado, e lança-se num estudo autobiográfico íntimo.

Mas é preciso não exagerar. Há quem pretenda vê-lo, por exemplo, transfigurado, na figura trágica do velho médico Jacob Granada, em Uma flor dentre o gélo, que é, para nós, uma das mais interessantes novelas da literatura portuguesa.

Faltam-lhe muitas características. A sua tendência é para se mostrar um pouco como era, melhorado no fisico e idêntico ou ligeiramente piorado no moral. Fraco, franzino, mas sem

deixar transparecer a particularidade da doença que o torturava. Esse pesadêlo afastava-o. Adentro dos seus romances mostra-se numa aspiração larga de vida e de ventura. Em Jacob Granada só podia admitir-se o simile substituindo a velhice pela doença. Nunca o faria.

Sentimo-lo, cheio de mocidade e de alegria, no estroina e doidivanas do Pôrto, Carlos Whitestone, da Família inglesa; adivinhámo-lo, na Morgadinha dos Canaviais, em Henrique de Souzelas, vindo de Lisboa, cansado da cidade, doente de nervos, prêso ao spleen dos ociosos, reconciliando-se com a vida ao respirar o ar tonificante da montanha; vêmo-lo, finalmente, quási sem disfarce, como que retratado, em tôdas as scenas das Pupilas, na figura insinuante e amorosa de Daniel.

Em muitas outras das suas obras, desde as comédias inéditas da primeira fase de escritor, aos contos e aos esboços literários, obras póstumas que viram, em parte, a luz da publicidade no volume Inéditos e Esparsos, êle aparece em passagens que recordam aspectos particulares da sua vida, onde é fácil surpreendê-lo em flagrante.

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Leiam êsses dois pequenos capítulos do conto incompleto A vida nas terras pequenas-e apenas faremos esta citação e concluirão que Estêvão de Urzeiros é, com o pequeno disfarce da falta de pergaminhos escolares, o próprio

Júlio Denis, condenado a ser médico de partido em terras de província.

A irmã que o acompanha é alguém que o seguiu de perto na sua vida e a que nos referiremos daqui a pouco.

Mas falemos da Família inglesa.

Nesse romance, que deve ter começado a escrever aos 19 anos, representa-se Júlio Denis em Carlos Whitestone, síntese das suas tendências e qualidades juvenis. Mais do que isso: retrata episódios da sua vida íntima familiar.

Cecília é a finalidade do romance. Não sabemos se existiu, de facto, na sua vida de devaneios, mas pela insistência com que o seu nome se repete, especialmente nas cartas publicadas sôbre impressões do campo, no Jornal do Porto, estamos em crer, como já acentuámos, que oculta o nome verdadeiro de alguém que, por momentos, o prendeu.

Seja como fôr, Cecília é, no romance, uma figura de relevo, mas que não excede nem a de Mr. Richard Whitestone nem a de Jenny.

O pai de Carlos, o fleumático súbdito da rainha Vitória, como refere o romancista, era um homem bom, mas frio; de elevada moral, mas sem a sensibilidade exagerada dos meridionais; era «sincero, franco, às vezes rude, nunca mesquinho e vil».

«Alheio e pouco propenso à metafísica»--

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