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III

AS «PUPILAS »

E A «MORGADINHA»

STUDEMOS, em primeiro lugar, as origens dêstes admiráveis romances de costumes populares: as Pupilas e a Morgadinha.

Ambos êles nasceram em Ovar, o período de maior actividade do romancista. Um foi ali gerado e não mais pôde desapegar-se do meio e da terra onde foi escrito. O outro tem grandes elementos tirados da vida vareira, mas contém personagens e paisagens que foram estudadas fora dali. Em pouco se semelham. Os meios em que se desenvolvem são diferentes. Um é o romance campesino típico, bucólico e aldeão. O outro, embora a acção decorra ainda na aldeia, passa-se num meio mais elevado.

No primeiro sente-se o campo, as scenas populares, as festas rurais: o outro tem por teatro salas discretas de famílias da província. Ambos têm elementos comuns, mas o romancista, enveredando por caminhos diferentes, soube por tal forma diferenciá-los que, à primeira vista, parecem de origens inteiramente diversas.

No desenvolver dêste trabalho teremos ocasão de demonstrar que a Morgadinha dos Canaviais tirou de Ovar as personagens mais importantes e algumas das scenas mais inte

ressantes.

Entre os manuscritos de Júlio Denis encontrámos dois trabalhos incompletos, sendo um, em parte, a cópia do outro, que merecem ser aqui apreciados.

Num dêsses manuscritos, o autor, depois de fazer a apologia da vida na aldeia, assunto que aborda em algumas passagens das suas obras, e que para ele é o manancial de que têm que socorrer-se os romancistas ávidos de originalidade que desejem aproveitar tipos e personagens hoje quási esquecidos», escreve o seguinte:

«E disso se poderia gabar quem há cinco anos fosse admitido na sala de recepção da sr.a Morgada das Fontainhas, D. Dorotea de Melo Carragena e Sousa de França e Albergaria, às horas em que se tomava o chá. O solar da septuagenária, representante de tantos nomes ilustres,

ficava situado nos subúrbios da vila de Ovar, pátria da nobre fidalga, e onde seu pai foi capitão-mor em tempos cuja memória arrancava, a cada passo, do peito de D. Dorotea um suspiro de saudosa significação.

«D. Dorotea não tinha cabedal para sustentar com o devido esplendor e galhardia a sua árvore genealógica tão carregada de nobilíssimas produções; era-lhe insuportável a vista do luxo que ostentavam famílias cujos mais próximos ascendentes não se cobriam diante dos seus; e, na impossibilidade de os sobrepujar em luxo e magnificências, ela preferia encerrar-se em uma quási completa reclusão, sob o pretexto de um desapêgo ao mundo e descrença em coisas e pessoas, digna, tanto na manifestação como na sinceridade, dum dos nossos scépticos de vinte anos.

<«<Enclausurava-se, pois, D. Dorotea com as suas pratas, os seus vestidos, cuja moda estava esquecida há vinte anos, os seus gatos, os seus criados e os seus móveis, e lançava, da sua clausura, olhares de soberano desdém para o resto do mundo.

«O acesso às salas desguarnecidas da aristocrática Morgada era dificilimo. Freqüentavam-nas, a título de amigos, apenas um padre meio fidalgo, dois velhos fidalgotes, igualmente ilustres e igualmente pobres, que passavam o tempo a consumir os restos de uma fortuna que de

mandas e hipotecas haviam, de ano para ano, reduzido em proporção assustadora; a título de familiares, que nunca se deviam esquecer do favor que recebiam nisso, sob pena de lhes ser lembrado, com severas admoestações, um boticário da vila e um doutor que ajudava a Morgada a perder várias demandas e lhe preparava o andamento de outras.

O lugar onde, de ordinário, se reünia esta escolhida assemblea, era uma pequena sala quadrada, de soalho nu e carcomido, teto de castanho pintado de branco, e altas paredes que uma série de quadros adornava, de caixilhos negros, contendo umas péssimas litografias, escandalosamente coloridas, das passagens mais interessantes da parábola do filho pródigo.

«A mobília desta sala mostrava uma variedade prodigiosa; o canapé de mogno era flanqueado por duas cadeiras de pau preto de estilo inteiramente diverso; em volta da sala, cadeiras de variadas qualidades, e junto ao canapé, um pequeno tapete que revelava longos anos de serviço no desbotado das côres. Sôbre uma pequena mesa, uma redoma onde se abrigava um S. João de marfim e ao lado dois castiçais de prata ofuscantemente polidos.

«Logo ao princípio da noite, às horas em que, quando o vento não era contrário, chegavam à solidão do solar da Morgada os sons das Ave-Marias da Igreja de Ovar, a mesa

puxava-se para junto do canapé, os habituais convivas acercavam-se dela e a criada trazia os preparativos do chá.

«D. Dorotea dignava-se prepará-lo e serví-lo com hospitaleira amabilidade e a conversa principiava a tomar uma vivacidade mais considerável, graças à confortável infusão e ao delicioso doce com que a verbosidade dos circunstantes era alimentada. D. Dorotea, constrangida pelas circunstâncias a prescindir de muitas ostentações, limitava-se a caprichar no bem servido do chá, e em mostrar, no serviço magnífico de prata e porcelana, uma passada riqueza de que hoje restavam apenas raros espécimes. Educada num convento de Aveiro, D. Dorotea trouxera de lá uma qualidade apreciável, a de saber preparar uma infinita variedade de doce que lhe grangeara entre a vizinhança uma merecida reputação.

«D. Dorotea tinha sido casada com um coronel de milícias que a deixou viúva passado pouco tempo e do qual lhe ficou um filho único para educar e imensas dívidas a satisfazer.

«A decadência da sua fortuna principiava dai; procuradores às mãos de quem a confiou continuaram a obra até o ponto em que então

se encontrava.

a

«O filho da sr. Morgada, na impossibilidade de viver da sua fortuna, foi obrigado a seguir uma carreira. A única que pareceu à descen

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