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mão, traçam-se já, com mais nitidez, as linhas gerais da sua acção. Têm os seguintes títulos:

Capítulo II. Á porta do templo e Scenas e retratos de família.

Júlio Denis trabalhava cuidadosamente os seus romances. Scenas primitivamente delineadas eram, em seguida, reduzidas ou alteradas, quando não eram por completo refundidas ou abandonadas. O estudo das personagens não saía logo perfeito. Temos a impressão de que alguns dos primeiros tipos tomados por modêlo, chegaram a ser substituidos por outros que melhor podiam desempenhar o papel que lhes era distribuido. Outras vezes aproveitava do que estudara apenas o que era mais vantajoso ao desenrolar das scenas, juntando na mesma personagem qualidades que tinha apreciado em várias pessoas. No que insistimos mais uma vez é que, pelo que respeita aos tipos dos seus romances, êle soube sempre escolhê-los nos meios que freqüentava, nas scenas que presenceava. Dava, porém, largas à fantasia no desenrolar do drama em que os envolvia."

Pudemos encontrar nos apontamentos que se referem à Morgadinha desenhos mais ou menos completos e manchas de colorido mais ou menos intenso, que Júlio Denis ia juntando como subsídios para a obra final. Aproveitava, depois,

muitas das passagens, condenava outras, aperfeiçoava, cortava, acrescentava, de sorte que hoje, ao confrontarmos a Morgadinha com os manuscritos que a antecederam, temos a impressão de estar em face de dois romances diferentes.

No manuscrito á porta do templo -- em que paira tôda a suavidade da Casa de Alvapenha e em que se descobre já uma parte da dramatização da Morgadinha, — há particularidades e episódios inteiramente diferentes e completamente inéditos, alguns dos quais bem merecem ser conhecidos.

sr.

Começa assim êsse manuscrito :

as

«Que santa paz de espírito gozavam as D. Quitéria e D. Genoveva na sua casa de Alvapenha aí pelo correr do ano de 1847!

«Ambas solteiras e quinquagenarias, ambas muito aferradas aos seus hábitos, muito tementes a Deus e inimigas da murmuração, as duas irmãs passavam uma vida, onde se descobria um suave cheiro de santidade, como o da alfazema que perfumava as suas gavetas e repassava a roupa branca pela qual elas velavam com escrupuloso carinho.

«A inalterável harmonia mantida há muitos anos entre elas, dava que entender a quantos as conheciam. E com razão, pois não é vulgar observá-la em casos tais, quando a idade e o humor naturalmente um tanto acre das velhas

celibatárias, justificam as pequenas impertinências que, sem outro auxílio, bastam já para originar tempestades no seio das famílias.

<As duas irmãs, porém, tinham o bom senso e abnegação suficientes para fazerem mútuos sacrificios em honra dos seus pequenos caprichos, inclinações ou antipatias. Há vinte e tantos anos que viviam ali isoladas na companhia apenas de uma criada tão velha como elas, e em todo êste tempo não se ouvira dentro daquelas paredes uma só palavra que, por mais alto pronunciada ou por significar uma menos evangélica paciência, destoasse da invariável monotonia dos seus diálogos habituais.

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«Era um exemplo edificante que elas da am aos seus vizinhos que, devorados por demandas entre primos, irmãos, pais e filhos, tios e sobrinhos, mostravam claramente, por seus actos, que era semente caída em amaldiçoado terreno.

«Estas discórdias intestinas entre as famílias de seu conhecimento faziam suspirar as senhoras de Alvapenha e aumentavam o número de padre-nossos com que tôda a noite se fazíam lembrar dos santos de quem eram validas, pedindo a felicidade dos outros, tanto ou mais ainda que a sua.

«A alma ia-lhes tôda nestas orações. Ouvir rezar as duas irmás, era escutar uma resenha das diferentes calamidades que afligem o género humano e que elas pretendiam desta ma

neira evitar. Um padre-nosso a S. Marçal para que nos livre do fogo; outro a S.la Luzia milagrosa para que nos defenda da cegueira; outro a S. Brás para nos proteger das doenças da garganta; um padre-nosso por todos os que andam sôbre as águas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro pelos órfãos; outro pelos doentes; um pelos bons, outro pelos maus; um pelos vivos, outro pelos mortos; um pelos justos, outro pelas almas do purgatório; não hesitando mesmo a sua clemência a transpor as portas do inferno e pedir também a remissão dos condenados; - emfim, depois desta enumeração, um último padre-nosso compreendia todos aqueles não mencionados, por esquecidos, que pudessem necessitar das suas orações.>>

No romance definitivo, estas duas personagens fundem-se na tia Dorotea, que Júlio Denis descreve com as mesmas côres e predicados junto da criada Maria de Jesus, que já existe no manuscrito, mas com o nome de Antónia. A scena que transcrevemos dos padre-nossos vem publicada, quási sem alteração, no romance definitivo (1).

(1) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., pág. 24.

A existência das duas irmãs na casa de Alvapenha deu ensejo ao romancista a descrições cheias de verdade e de interèsse que, afinal, desprezou por ter de reduzir a uma só as duas curiosas personagens:

«D. Genoveva, mais velha três anos que sua irmã, era a dispenseira e superintendente dos negócios caseiros. D. Quitéria (1) ocupava-se das contas e direcção dos contratos monetários, arrecadação de rendas, etc., etc.

«Elas tinham uma fortuna sofrível que, não obstante as respectivas omissões que o seu procurador lhes fazia, bastava de sobra para elas, cujas necessidades eram limitadas.

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«Havia quem tivesse já dado a entender a estas senhoras quão mal administrada lhe andava a fortuna nas mãos daquele homem... que sabia fazer render os seus serviços.

«A êstes avisos razoáveis as boas irmãs respondiam sorrindo:

Deixá-lo, deixá-lo. Nós estamos costumadas com êle e não nos poderíamos entender

com outro.

(1) Ás vezes também a trata por D. Jerónima.

Nós dar-lhe hêmos sempre o nome de D. Quitéria por ser o mais repetido e aparecer, a breve trecho, em substituição do de D. Jerónima que, por certo, lhe não soou bem ao ouvido, no decorrer das descrições.

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