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UNIV. OF

Dom João II e a Renascença Portuguesa

PRIMEIRA PARTE

O Meio

CAPITULO I

A Europa

A Renascença: sua interpretação-A Igreja e o Feudalismo A centralização - O comércio-0 trabalho -0 ensino e as grandes invenções - A arte.

A Idade Média não se considera já hoje como esse tradicional período de trevas e épicas façanhas, em que o pensamento, limitado às estreitas subtilezas da escolástica, abandona a cultura da civilização antiga e a faz sycumbir sob o colossal pedregulho da moda teológica. Tambêm não vemos já na invasão nórdica o narcótico galvanizador. que manteve a Europa adormecida, durante séculos até à data famosa da Renascença. A admitir tal absurdo, momento ultra-milagroso teria sido êsse que, de modo inconcebivel, soube criar as três maiores maravilhas que o génio humano jámais produziu: a descoberta do Homem, a descoberta dos mundos, a descoberta da terra.

E' certo que a Renascença conduzindo a Europa a uma vida nova, foi um movimento inconfundivel com tantos outros de que teem resultado modernamente as grandes transformações sociais. Não se originou ela,

sem duvida, em um esforço crítico, como a Reforma ou a Revolução de 89. Mas se assim, constitue um fenómeno singular, nem por isso deixa de ser o corolario fatal de uma acção formidavel, cujas forças levaram séculos a organizar-se, a ordenar-se, e nem o seu significado poderá ser buscado fóra das leis reguladoras da evolução. A critica que os humanistas fizeram ao passado, que tanto concorreu para a falsa interpretação do periodo precedente, poderá iludir sómente aqueles que desconhecem a existencia desse fatal princípio de reacção que, contra as ideias dominantes e geradoras, necessariamente acompanha a nascença e desenvolvimento de novos princípios.

A verdade é que, emquanto os teólogos tergiversavam, a vida popular, em perpétua ebulição, desenvolvia-se com pujança nunca conhecida. E' no decorrer do largo ciclo medieval, creador das nacionalidades, que reside a explicação de muitos factos que nos respeitam e cuja ignorancia trouxe consigo, quer no que se refere aos factos, quer no que se refere aos homens que neles intervieram, uma errada inteligencia das coisas, capaz, em muitos pontos, não só de ocultar, mas até de inverter a sua significação.

A Idade Média assistira logo após o seu inicio, a uma das mais fecundas creações do cristianismo - a separação dos dois poderes, o temporal e o espiritual. Fenómeno do maior alcance, porque se tais poderes reunidos eram, como se vê, analisando o Estado antigo, a consagração do mais completo despotismo, a sua separação veio gerar, o nucleo de um novo organismo social donde saiu o livre exame e esse poderoso sentimento de independencia perante a força material, fonte das liberdades modernas. Assim como a Igreja repele a interferencia do poder temporal no que respeita á sua vida interna e destrinça na sociedade duas naturezas divergentes, assim tambêm o individuo descobre dentro de si proprio um mundo interno, superior a todas as vicissitudes, que virá a ser a fonte inexaurivel das suas energias. Assim como ela lutou com o Impe

rador, tambêm o homem lutou pela liberdade do seu fôro intimo, trabalhando sempre para subordinar a vida social ás aspirações do seu espirito, brigando tenazmente contra o axioma social do mundo classico, que era a sujeição incondicional aos princípios -ou guerreiros, ou teocráticos ou de casta. Trabalho obscuro e complexo de mil anos, trabalho criador que tantas maravilhas produz, que faz finalmente emergir uma nova era, maior e mais luminosa do que todas as outras: a Idade Moderna.

No espaço de tempo decorrido entre o seculo XI e o seculo XIV, adquire a sociedade europeia uma plasticidade até então desconhecida. E' um periodo cheio de exuberância, onde não ha ordem, onde tudo é flutuante, mas onde paira um profundo sentimento de emancipação que provem do seu proprio modo de ser anárquico. Após a ruina dos tres grandes esteios do equilíbrio europeu no inicio medieval - o Pápa, o imperador do ocidente e o imperador do oriente-inicia-se o desenvolvimento de uma nova formula social -o feudalismo-cuja base fundamental, assentando na confusão da propriedade com a soberania, arruinou toda a força do governo central, mas em cuja hierarquia o povo teve tambêm o seu logar. Aí ficou vexado e oprimido, sem duvida, mas dispondo de uma arma infalivel que, cêdo ou tarde, acabaria por dar-lhe a vitória, no meio de uma sociedade guerreira e ociosa: -o exclusivo da produção.

Tambem o rei, por politica, auxiliava sempre que podia, o elemento popular nas suas aspirações, contra essa nobreza que, aceitando em princípio a suserania da realeza, obstava comtudo a que ela ultrapassasse os limites de um força inofensiva, manejavel segundo os seus interêsses. Por isso, á sombra da protecção rial, comunas e municípios criam e estendem as suas raizes, multiplicam-se, emquanto o feudalismo definha, em virtude do vicio de origem: a sua constiuição excessivamente fragmentária. Esta luta de seculos, verdadeira revolução social, acaba por transformar a situação do

rei que, apoiado no braço popular, de simples susereno, passa a ser o soberano da nação.

Foi a acção da Idade Média na renascença politica. Outro produto lógico de Idade Média, as crusadas, preparou igualmente o futuro engrandecimento economico da Europa.

Muito antes do seculo XI, já o Mediterraneo Oriental era sulcado por uma linha de transportes, que regularmente levavam á Palestina, milhares de crentes, confiados em que a simples visita aos logares santos era a melhor das indulgencias para conquistar o ceu. Não admira pois que da aspiração de livrar o santo sepulcro da mão ímpía, derivassem verdadeiras expedições armadas, de caracter bélico-religioso. Alem disto, desde que as terras do Mediterraneo passaram do suave e inteligente dominio dos arabes ao dos ferozes seljucidas, tão abalados foram os interêsses das grandes cidades comerciais do sul que urgia a necessidade de aniquilar o intoleravel exclusivismo otomano, conquistador da maior fonte comercial do tempo. A auxiliar esse desideratum, muito concorria tambêm a organização da propriedade ao tempo, que, defeituosa e escassa para o sustento da população em aumento progressivo, foi mais um elemento instigador da imigração para as sonhadas regiões do Oriente, a qual, dados as circunstancias da ocasião, não podia deixar de ter um caracter acentuadamente militar.

Mas, passada a crise de entusiasmo, a politica eupopeia acaba por tomar uma nova feição, e o imigrante, sofrida a desilusão nessas terras áridas da Siria, onde apenas a pilhagem poderia dar-lhe alguns recursos, prefere moldar-se ás condições da vida no seu país. Os elementos mais irrequietos, por lá tinham sucumbido, (no Oriente), e os que haviam ficado, já práticos e experientes, procuraram simplesmente adquirir o equilíbrio indispensavel á vida social. O comerciante chegou á conclusão de que a paz lhe era incomparavel mais proveitosa de que uma guerra, cujas despezas indirectamente teria que cobrir...

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