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Doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
Quem em chôro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos engeito.

Que não parece razão,
Nem sería cousa idonia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia
As cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes morra de tristeza,
Que por abrandá-la cante.

Que se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao torinento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
O que passo, e passei ja,
Nem menos o escreverei;
Porque a penna cansará,
E eu não descansarei.

Que se vida tão pequena
S'accrescenta em terra estranha;
E se Amor assi o ordena,
Razão he que canse a penna
D'escrever pena tamanha.

Porém, se para assentar
O que sente o coração,
A penna ja me cansar,
Não canse para voar
A memoria em Sião.

Terra bem-aventurada,
Se por algum movimento
D'alma me fores tirada,
Minha penna seja dada
A perpétuo esquecimento.
A pena deste destêrro,
Qu'eu mais desejo esculpida
Em pedra, ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu êrro.

E se eu cantar quizer
Em Babylonia sujeito,
Hierusalem, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito;
A minha lingua se apegue
Ás fauces, pois te perdi,
S'em quanto viver assi
Houver tempo, em que te negue,
Ou

?
esqueça de ti.

.
Mas ó tu, terra de glória,
S'eu nunca vi tua essencia,
Como me lembras na ausencia?
Não me lembras na memoria,
Senão na reminiscencia:
Que a alma he taboa rasa,

que m'

Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que vôa da propria casa,
E sobe á patria divina.

Não he logo a saudade
Das terras onde nasceo
A carne, mas he do Ceo,
Daquella santa Cidade,
Donde est' alma descendeo.
E aquella humana figura,
Que cá me póde alterar,
Não he quem se ha de buscar;
He raio da forinosura,
Que só se deve d'amar.

Que os olhos, e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, nem da candeia,
He sombra daquella ideia,
Qu'em Deos está mais perfeita.
E os que cá me captivárão,
São poderosos affeitos
Qu'os corações tée sujeitos;
Sophistas, que m'ensinárão
Maos caminhos por direitos.

Destes o mando tyrano
M'obriga com desatino
A cantar ao som do dano
Cantares d'amor profano,
Por versos d'amor divino.
Mas eu, lustrado co’o santo
Raio, na terra de dor,

De confusões e d'espanto
Como hei de cantar o canto,
Que só se deve ao Senhor?

Tanto póde o beneficio
Da graça que dá saude,
Que ordena que a vida mude:
E o qu'eu tomei por vício,
Me faz grao para a virtude;
E faz qu'este natural
Amor, que tanto se préza,
Suba da sombra ao real,
Da particular belleza
Para a belleza geral.

Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Hierusalem sagrada,
E tome a lyra dourada -ri
Para só cantar de ti;
Não captivo e ferrolhado
Na Babylonia infernal,
Mas dos vicios desatado,
E ca desta a ti levado,
Patria minha natural.

E s'eu mais der a cerviz
A mundanos accidentes,
Duros, tyrannos e urgentes,
Risque-se quanto ja fiz
Do grão livro dos viventes.
E, tomando ja na mão
A lyra santa e capaz
D'outra mais alta invenção,

Camões JII.

Calle-se esta confusão,
Cante-se a visão de paz.

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este accento santo,
Mova-se no mundo espanto;
Que do que ja mal cantei
A palinodia ja canto.
A vós só me quero ir,
Senhor, e grão Capitão
Da alta torre de Sião,
Á qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.

No grão dia singular,
Que na lyra em douto som
Hierusalem celebrar,
Lembrae-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aquelles que tintos vão
No pobre sangue innocente,
Soberbos co'o poder vão,
Arrazá-los igualmente:
Conheção que humanos são.

E aquelle poder tão duro
Dos affectos com que venho,
Qu'encendem alma e engenho;
Que ja in’entrárão o muro
Do livre arbitrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando vem a escalar-me,
Maos espiritos damnosos,
Que querem como forçosos

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