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cluir que a Morgadinha dos Canaviais é, desde as suas origens, um romance vareiro.

Há personagens e paisagens que não pertencem à região; mas os tipos principais e até a base do scenário é da vila e arredores onde primeiro Júlio Denis traçou os seus esbocetos.

Nem sequer esqueceram as lutas eleitorais, tão violentas por aquelas paragens, que contam no seu activo desordens graves e até algumas mortes. Júlio Denis deu-lhes o colorido das variadas peripécias que decorrem desde os comícios da taberna do Canadas à traição do brasileiro e do Morgado João das Perdizes, para acabarem no gesto honrado e nobilíssimo do velho herb anário, figura de santo que não conseguimos identificar, e que é a personificação da máxima elevação moral.

IX

«O CANTO DA SEREIA »

I

M

UITAS vezes procurámos investigar, a propósito das Pupilas do sr. Reitor, a razão porque Júlio Denis não

faz nesse romance uma única referência directa ao mar, quando é certo que tôda a acção se passa, não no Minho, como se tem acreditado, mas em Ovar, população essencialmente marítima.

Passando em revista os seus manuscritos inéditos, encontrámos um pequeno romance cuja acção se passa em pleno mar entre a praia do Furadouro, contígua a Ovar, e Espinho, que fica a alguns quilómetros ao norte.

O romancista pensava revê-lo mais tarde, juntar-lhe talvez novos episódios e entregá-lo depois à publicidade. Sendo assim compreende-se que

seu

não quisesse repetir o mesmo scenário e por isso deslocasse para o norte, para predilecto Minho, os dois romances vareiros: a Morgadinha e as Pupilas. O primeiro ainda pôde arrumá-lo em paragens por vezes diversas daquelas onde foi nascido, mas as Pupilas é que não conseguiu desenraïzar da terra de origem, como demonstraremos.

O Canto da Sereia é escrito sem disfarces de scenário. Passa-se na zona marítima de Ovar. É um episódio da vida de pescadores, excessivamente dramatizado e tanto que sái um pouco da forma vulgar do romancista para nos lembrar, em algumas passagens, as páginas dolorosas e extravagantes de Edgard Poë.

Não só desperta um inesperado interêsse, mas, sobretudo, apresenta uma documentação preciosa, que aproveitaremos. Que extraordinário período de actividade literária foi êsse em que Júlio Denis esteve em Ovar!

Já o mostrámos através dos esboços ali tracejados do romance a Morgadinha. Sôbre as Pupilas falaremos daqui a pouco.

Juntem-se a estas obras as poesias dessa época, algumas das quais podemos hoje datar com precisão. A do Bom Reitor, já publicada, é dêsse tempo; é-o também a Oração do Reitor, que atrás publicámos, página de profunda unção religiosa, e uma das mais belas que Júlio Denis escreveu.

A interessante poesia as Andorinhas vêmo-la pela primeira vez no Canto da Sereia, um pouco diferente especialmente na parte final, que foi depois ligeiramente acrescentada (1). Transcrevêmo-la tal como a encontrámos neste manuscrito :

«Deixai êstes montes de neve coroados,
As selvas despidas e as flores sem côr,
As grossas torrentes e os troncos quebrados
E os vales cobertos de denso vapor.

«E quando, de novo, na verde campina
Violetas e rosas se virem florir,
E a serra inundada de luz matutina
As gélidas vestes de novo despir,

«E quando, de novo, na praia arenosa
A onda mais plácida vier deslisar,
E das laranjeiras de copa frondosa
Cairem as flores no chão do pomar,

«E quando estas nuvens escuras, pesadas,
Quais negras montanhas, que se erguem do sul,
Fugirem dispersas e em flocos rasgadas
Nos plainos imensos dum límpido azul,

«Voltai; nova quadra de amor vos espera.
Das praias distantes para estas parti,
Que a luz que dimana de fúlgida esfera,
Do sol já sem nuvens, às aves sorri.

(1) As pequenas alterações dão-se nas estâncias que se seguem à quarta quadra.

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