menos aqui na vila. Mal os marinhões (1) che gam aos Campos (2) já êle está todo vendido para êsses homens das estradas (3) que juraram fazer-nos morrer de fome, pois levam-nos quanto peixe se vem ali vender. ¿ E quem há que lhes pode cobrir o lanço? Homens ordinários como êles são! «<- Má praga esta das estradas, acrescentou D. Dorotea, suspirando. Há pouco as de macadame, agora as de ferro, àmanhã as de ouro... e as nossas terras a partirem-se, a retalharem-se que faz mesmo ennegrecer o coração ao vê-las. -Mas êles indemnizam os proprietários, disse o doutor, que sabia ser esta a objecção mais insuportável para D. Dorotea. - Indemnizam! Tem graça a palavra, doutor. Dez réis de mel coado por um terreno onde se empregavam para mais de quatro alqueires de semeadura. Indemnizam! O demo os indemnize a êles quando mesmo pagassem (1) Marinhão, têrmo regional que significa homem do mar da região que vai de Mira a Ovar. Vidè Egas Moniz, Do Valor e da Saudade, Lisboa, Casa Ventura Abrantes, 1923. Júlio Denis emprega-o repetidas vezes, v. g. in Pupilas, ed. cit., pág. 141. (2) Largo de Campos, onde se fazia a praça, em frente à casa onde, ao tempo, vivia Júlio Denis em Ovar. (3) Que andavam em construção. o valor do terreno! Pagam-me o desgôsto de ver as terras retalhadas? E as despesas, ao fabricá-las não aumentaram? E então para quê? Pois não se ia até hoje ao Pôrto e a Lisboa pelos caminhos que havia? «O padre que estivera calado lendo um número do Direito, único jornal, no Pôrto, órgão do partido legitimista, levantou a cabeça a esta apostrofe da sr.a Morgada contra o progresso e acrescentou: Hoje é a época das estradas, menos a da virtude onde crescem cardos e abrolhos de pouco calcada que vai. Edificam-se imensos casarões para teatros, para palácios e para estações; e não se edificam igrejas nem capelas. A época vai boa, não tem dúvida nenhuma! Boa para esses pássaros de arribação que vêm do estrangeiro chupar-nos a última gota de sangue e bom para os pedreiros... «E em tom de aparte acrescentou: «-... livres! (1) «E continuou a ler com frieza imperturbável um artigo de fundo da política cediça que acabara de parafrasear. «D. Dorotea, que vivia em eterna admiração (1) Este padre parece ter servido a Júlio Denis para estudo do frei Januário dos Fidalgos da Casa Mourisca. da eloqüência, profundeza de vistas e pureza de sentimentos do seu confessor, abanou a cabeça e suspirou melancòlicamente, o que exprimia adesão completa às palavras pronunciadas e de comiseração pelos destinos futuros da sociedade actual. <«<- Por isso nos castiga Deus, por isso deu um ano de sequeiro e o mar...» Acaba aqui o interessante manuscrito. Daqui passou o ambiente, embora bastante modificado, para algumas scenas da Morgadinha. Daqui tirou Júlio Denis dois nomes, pois nem sempre se conformava com os primeiros escolhidos. Era-lhe indispensável que fôssem bem à música da prosa. A D. Dorotea do romance não é bem a velha Morgada, mas dela aproveitou alguma coisa com que adornar a figura encantadora da tia de Henrique e que, como a seu tempo se verá, copiou principalmente de sua tia D. Rosa, em casa de quem passou os meses que esteve em Ovar. Éste estudo deu-lhe um pouco a descrição da Casa do Mosteiro, e trouxe-lhe elementos que depois modificou para vários episódios do romance. O nome do primo Henrique ficou também. Somente o Henrique do romance definitivo é bem diferente do que se apresenta no chá da sr.a Morgada. Os trechos que transcrevemos formam um episódio à parte, cheio de relèvo pela naturalidade do diálogo e pela verdade das descrições. São preciosidades literárias do romancista que, só por si, valia a pena trazer a público; mas têm para nós o valor de uma valiosa prova documental. Estamos em crer que foi êste um dos primeiros esboços do romance a Morgadinha. Sôbre ó que não pode haver dúvidas, especialmente em face de um outro manuscrito que deve ser da mesma época, é que Júlio Denis procurava estudar tipos e personagens e coligir elementos que mais tarde havia de distribuir pelos dois livros. O segundo manuscrito a que nos referimos é um outro pequeno esbôço do romance. É um pouco a duplicação do primeiro, mas escrito sob uma orientação bastante diferente. Até os apelidos da sr. Morgada são outros, como diversa é a forma por que a estuda e aprecia. Falta-lhe, porém, a beleza da scena que acabamos de apreciar. Escreve Júlio Denis: «D. Dorotea Filomena de Custoias e Almada, Morgada e actual proprietária da casa e quinta das Cabaneiras (1), era uma senhora gorda e robusta que se supunha acometida por (1) Cabanões, sede da primitiva população vareira. mais de mil e uma doenças imaginárias dizendo-se, por isso, uma das mais desgraçadas criaturas do Senhor. «João Semana sustentava uma polémica continuada com esta sua cliente, negando-lhe a realidade dos seus padecimentos, com grande descontentamento dela, que parecia querer-lhes como a mais valiosa das suas propriedades». Noutra passagem do mesmo manuscrito, aliás bastante incompleto, encontramos outra referência ao velho e simpático cirurgião, que passou à posterioridade pela mão de Júlio Denis. Aparece-nos aí uma nova personagem: «A Morgada cabeceava, pois dominou-a um sono restaurador; e emquanto ela cabeceia aproveitemos o tempo examinando uma outra figura de mulher bem mais digna das nossas atenções que estava então na mesma sala em que dormia a descendente dos Custoias e Almadas. «Desde já suspeitará o leitor que falo da sobrinha da Morgada, de quem já lhe deu noticias a criada do sr. João Semana no capítulo anterior (1). (1) Capítulo que não pudemos ler por se ter extraviado. |