da phantasmagoria, em logar de o representar na praça publica, como fazia o franciscano, nos limites do real. O que fôra producto natural do seu espirito ensina-o aos outros como processo em certa fórma mechanico, para o reproduzir cada qual, adaptando o poema ao seu uso pessoal, ajustando-o, por assim dizer, á sua estatura, mas em fórmas identicas para todos, em que a successão dos objectos de meditação é prevista, regulada immutavelmente. Ao passo que o theologo da Reforma entrega o campo aberto da Escriptura a seu discipulo, Loyola prohibe expressamente ao seu de nada lêr nem pensar sobre um outro mysterio além d'aquelle que se deve meditar no dia e hora presente. Meditar: e como? applicando pela imaginação os cinco sentidos á contemplação das pessoas sagradas e das circumstancias que as rodeiam. É preciso vêl-as, ouvil-as, cheiral-as, saborear o perfume que emana d'ellas, tocar e beijar as suas vestes, as pégádas dos seus passos, etc.»1 E um pouco adiante accrescenta: «Quaes serão as consequencias de um systema que ao mesmo tempo sobreexcita e subjuga a imaginação, afasta o sentimento da alta espiritualidade, e tende a reduzil-o á sensibilidade nervosa, proscreve a rasão, e supprime, quanto possivel, a responsabilidade pessoal? Os fructos inevitaveis serão o enfraquecimento do caracter, da vontade, da moralidade, a anciedade habitual dos prodigios exteriores, das visões, das apparições, as tendencias para minuciosas praticas, a absorpção em tudo o que falla aos olhos, em uma especie de materialidade devota.»2 Transcrevemos estas valiosas palavras para explicarem o facto assombroso da grande geração portugueza do seculo XVI achar-se ao fim de trinta annos mortalmente atacada na sua vida mental e moral, a ponto de acceitar com festas e Te-Deum a perda da autonomia da nação em 1580. O poder suggestivo dos Exercicios espirituaes é um phenomeno psychologico em que se faz o desequilibrio entre a subjectividade e a objectividade por uma fórma pathologica, com jejuns, vigilias e actos externos, reagindo sobre o cerebro e determinando a vontade. Cervantes, no typo eterno de Don Quijote, representou este estado mental de sobreexcitação, provocada pela leitura exclusiva das novellas de Cavalleria. 3 Vê-se portanto que o apaixonado leitor das novellas do Ama 1 Histoire de France, t. vIII, p. 203. 2 Ibidem, p. 204. 3 Sobre esta relação psychologica escreve Philarète Chasles: «Inigo relegado no seu castello e D. Quichote no seu solar pareceram a um escriptor protestante de tal fórma analogos que ousou suppor uma ironia de Cervantes contra dis e de Galaor, ao inventar o seu methodo espiritual, não fez mais do que systematisar os processos de representação subjectiva, applicando-os ás cousas devotas. Assim, emquanto as outras ordens monasticas se distinguiam pelos distinctivos externos, Ignacio, vendo que o habito não é que faz o monge, tratou de lhe imprimir uma feição interna, indelevel, uma conformação moral, um cunho como a marca de fogo, criando esse typo uniforme do jesuita, que nos apparece através da historia, arrastando a sua mediocridade e fazendo-se valer pela vulgar habilidade. Comprehende-se, pois, como homens de mais valor do que Ignacio de Loyola se acharam submissos á sua alliciação; o pacto que os sete companheiros fizeram na egreja de Montmartre, em 15 de agosto de 1534, depois de uma missa dita por Fabre, tem um tanto de melodramatico, em harmonia com a hallucinação em que elles se deixaram envolver. Estavam ahi lançados os rudimentos da Companhia de Jesus. Desviados, por circumstancias, do seu plano phantastico de um novo apostolado na Palestina, foram parar a Roma, onde todas as exaltações mysticas não eram bem consideradas. Mesmo o texto dos Exercicios espirituaes foi mandado revêr, por desconfiança. O espirito de Paulo III era bastante critico e habil para se deixar attraír por manifestações banaes de um puro ascetismo; para elle a crise politica preoccupava-o mais do que a crise religiosa. Exigiam-lhe de todos os lados um Concilio geral, que elle poderia ir addiando com argucias de occasião, mas a sua situação entre Francisco I e Carlos v é que se tornava de uma angustiosa instabilidade. Entre as potencias da Europa era Portugal a que se achava em uma perfeita neutralidade; D. João III procurava habilmente conciliar-se com Carlos v, seu cunhado, e com Francisco I, marido de sua madrasta, a rainha D. Leonor, viuva de D. Manuel. Portanto o papa Paulo III olhava para Portugal como um recurso de salvação, de um intermediario valioso, que poderia acudir-lhe em qualquer collisão violenta. De Portugal, e com o maior encarecimento, o fundador dos Jesuitas, e de ter transportado, nas suas paginas admiravelmente comicas, a curiosa realidade que lhe apresentava a vida de Loyola. Não pensamos assim; Cervantes tirou os materiaes da sua obra do seu seculo e dos costumes do seu paiz. Nada mais commum em Hespanha do que esta existencia impetuosa, a exaltação solitaria, a concentração de todas as faculdades em um ponto unico, de todas as potencias da alma em um só pensamento. A monomania de Inigo virou-se para a religião como a sua cavalleria.» (Op. cit., p. 308.) 1 Sobre este caracter de neutralidade da politica portugueza, escreve o visconde de Santarem: «O systema politico do nosso gabinete, observado no reinado foi-lhe recommendada a nova ordem da Companhia de Jesus pelo proprio monarcha D. João III. Como foi levado o rei a este acto quasi de fundação, estando até esse tempo preoccupado ardentemente para conseguir o estabelecimento da Inquisição? Sabe-se que D. João III tinha uma absoluta confiança em cousas de religião e de ensino no velho Doutor Diogo de Gouvêa, e este exaltado inimigo do protestantismo, Principal do Collegio de Santa Barbara, onde tivera por discipulos os instituidores da Companhia, recommendou-os por uma fórma calorosa a D. João III, pedindo-lhe a cooperação do seu valimento soberano. É natural que levasse o rei pela idéa das missões na India. D. João III, em carta de 4 de agosto de 1539, escreveu para Roma, ao seu embaixador D. Pedro de Mascarenhas, recommendando esses Clerigos letrados, que mandava saber que homens eram, e que obtivesse as licenças necessarias do papa. Merece lêr-se este importante documento, por onde se conhece como a Companhia nasceu sob o influxo de D. João III, a quem o padre Simão de Vasconcellos considerava como um dos seus fundadores: «Dom Pedro Mascarenhas amigo, Eu el rei etc. «Porque o principal intento, como sabeys, asy meu como del Rey de el-rei D. Manuel e continuado no de el-rei D. João ш, deve ser considerado como uma obra prima de habilidade, por isso que soube manter-se em paz com o imperador Carlos v e com Francisco 1, rei de França, sem embargo das desavenças e aturadas guerras que entre si tiveram estes dois soberanos. Se bem considerarmos na posição de Portugal, por uma parte contiguo á Hespanha, e por outra em rasão de suas conquistas exposto sem cessar aos insultos dos corsarios e piratas francezes que infestavam suas costas e interceptavam seu vasto commercio; se bem reflectirmos em tão arriscada situação, não podemos deixar de confessar que é com summa justiça que caracterisamos a politica do nosso gabinete por uma obra prima de habilidade, e que não é sem rasão que extranhamos de vêr que nenhum dos nossos chronistas e historiadores lhe tenha dado o devido apreço... As difficuldades e exigencias politicas, de que o gabinete portuguez se viu ladeado, em presença das contendas e guerras ateadas entre aquelles dois poderosissimos rivaes, não podiam ser maiores, pois vêmos que o imperador Carlos v, na carta escripta a el-rei D. Manuel em data de 9 de julho de 1521, dando-lhe parte do rompimento das allianças com França e da declaração de guerra por elle feita áquella potencia, exigia, por via do seu embaixador na côrte de Lisboa, que Portugal houvesse de prestar aos seus viso-reis, em taes conjuncturas, toda aquella assistencia que era para esperar-se dos estreitos vinculos que entre elle imperador e el-rei D. Manuel existiam.» As difficuldades politicas augmentaram no reinado de D. João III, tornando-se sempre neutral, negando-se a entrar em uma Liga contra a França, e servindo sempre de medianeiro para os tratados de paz. (Vide Quadro elemeutar das relações politicas e diplomaticas de Portugal, t. I, p. LXIV e seg.) meu senhor e padre, que santa gloria aja, na impresa da India, e em todas as outras conquistas que eu tenho, e se sempre mantiveram com tantos perigos e trabalhos e despesas, foy sempre o acrecentamento de nossa santa fe catholica, e por esto se sofre todo de tam boa vontade, eu sempre trabalhei por haver letrados e homens de bem em todas as partes que senhoreo, que principalmente fação este officio, asy de pregação, como de todo outro ensino necessario aos que novamente se convertem á fee e graça de Nosso Senhor, ategora he nisto tanto aproveitado, e vay o bem em tanto crecimento, que, asi como me he mui craro sinal que a obra he aceita a Nosso Senhor, sem cuja graça espicial seria impossivel fazer-se tamanho fruto, asi me parece que me obriga a nam somente a continuar com todo cuydado, mas ainda asy como crece a obra asy acrecentar no numero dos obreiros: e porque agora eu fuy enformado per carta de mestre Diogo de Gouvea que de Paris erão partidos certos clerigos letrados e homens de boa vida, os quays por serviço de Deos tinhão prometido proveza, e somente viverem polas esmolas dos fieys christãos a que andam pregando, por onde quer que vão, e fazem muito fruyto; e segundo agora tambem vy por huữa carta sua delles, que escreveram ao mesmo mestre Diogo a Paris e m'a mandou, e o trelado vos vai com esta, elles aos XXIII de novembro eram nessa corte segundo a carta diz detydos então polo papa pera lhes ordenar o que havia por seu serviço que elles fizessem, e sua tenção, segundo se vee por esta carta, he converter infieys, e dizem que aprazendo ao Santo Padre, a quem se são offerecidos e sem cujo mandado nam ham de fazer nada, que elles yram á India; e porque me parece, sendo elles destas calidades e desta tenção, que la fariam mui grande serviço a Nosso Senhor, e aproveitariam muito nas cousas da fee, asy pera ensino e confirmação dos que a ja tem recebida, como pera trazer outros a ella; vos encomendo muito que, tanto que esta carta receberdes, trabalheis por saber que homens estes são, e onde estão, e de sua vida e costumes e letras, e preposito; e sendo estes lhes faleis se ahi esteverem, e sendo absentes lhe escrevays e façays que elles queirão vir a mim, porque certo, se seu preposito he esse de acrecentar e aproveitar á fe, e servir a Deos pregando e com exempro de suas vidas, nam pode haver parte onde lhes estê mais aparelhado poderemno fazer e comprir seus desejos que em minhas conquistas, onde serám sempre tratados de maneira que lhe seja ainda dobrada ajuda e azo pera milhor servir a Deos. E sendo necessario licença do santo padre, ou ainda mandado pera isso, vós lhe supricai de minha parte que lha queyra dar e mandar-lho, dando-lhe esta enformação, que ante HIST. UN.-Tom. 11. 2 elle e suas grandes virtudes e santissimo zelo deve de valer muito pera conceder essa graça de mui boa vontade. E assentado vós com elles que queiram vir ou por terra ou por mar, como milhor vos parecer e se elles mais contentarem, lhe darês todo aviamento e toda maneira de seu gasto pera o caminho em toda abastança. E haverei por meu serviço vir huua pessoa vossa com elles pera os guiar e acompanhar porque venham o mais cedo que seja possivel. Tomai desto espicial cuidado, que o receberei de vós em serviço.» 1 Não admira pois que Paulo III, para ser agradavel ás solicitações do rei de Portugal, passasse a bulla da confirmação do primeiro instituto em 27 de setembro de 1540. Os sete companheiros tinham alliciado a si mais outros tres, que eram Claude Jay, que se licenciara em Santa Barbara em 1535, e foi o propagandista do jesuitismo na Austria, e Pasquier Brouet, que preparou a fundação do Collegio de Clermont, conhecido depois pelo titulo de Luiz o Grande; Postel foi o terceiro, mas Ignacio repelliu-o por duvidar da infallibilidade do papa. Quicherat, na Historia do Collegio de Santa Barbara, apresenta o problema da influencia d'esta corporação pedagogica sobre a Companhia de Jesus; diz elle: «O seu titulo, a ajuizar por uma tradição que ainda subsistia no seculo passado, fôra fixado em Santa Barbara. Santo Ignacio, emquanto ali estivera, tinha collado uma imagem de Jesus sobre a porta do seu quarto; por causa d'isto os escholares chamaram ao pequeno nucleo de amigos, entre os quaes veiu a confinar-se, Societas Jesu e Jesuitae. Estes nomes agradaram-lhe, posto que fossem dados com maliciosa intenção; e mais tarde, quando elle creou o seu instituto, não se deu ao trabalho de procurar outros titulos. Mas, emquanto os barbistas se estribavam n'esta narrativa, os do Collegio de Montaigu sustentavam, não com menos segurança, que fôra entre elles que Santo Ignacio adquirira a devoção pelo nome de Jesus, porque este collegio tinha sido sempre considerado e definido, desde João de Standonck, como a eschola especial em que a mocidade se tinha formado á imitação de Jesus, e que de mais a mais a abreviatura symbolica IHS, que se tornou o sêlo dos Jesuitas, estava pintada á entrada da Capella de Montaigu.» Deixando de parte esta pendencia, Quicherat attribue à influencia de Santa Barbara a continuação de um certo espirito humanista nas escholas jesuiticas: «Nós tomariamos mais voluntariamente 1 Corpo diplomatico portuguez, t. iv, p. 104. 2 Quicherat, op. cit., t. 1, p. 200. |